domingo, 28 de dezembro de 2014

“Base nacional curricular comum” em Cuba

Bandeira de Cuba
Entrei para a política aos 13 anos (nasci em 1964), ouvindo todo tipo de elogio ao modelo de vida cubano e, em particular, aos seus sistemas educacional e de saúde. Na Universidade, três anos após a queda do Muro de Berlim, dissidentes da Ilha e visitantes esquerdistas brasileiros informavam sobre as mazelas da política e da economia e vaticinavam: o regime não resiste mais 10 anos.
Pois bem, cresci, cognitivamente, e produzi a minha própria avaliação sobre a importância de Fidel Castro para as utopias da esquerda, em vigor na América Latina, a escandalosa iniciativa do “bloqueio à Cuba” e as limitações da “Revolução” no que diz respeito à liberdade de expressão, etc. Contudo, as notícias sobre a excelência da Ilha, em determinados setores como a educação, não pararam de chegar aos meus ouvidos.
Nos mesmos anos de crise e no pós-dissolução da União Soviética, o sistema educacional cubano era considerado um sucesso, comparado aos demais países que passaram por revoluções socialistas (Carnoy, 1989; Gasperini, 2000). Em 2014, quinze anos depois, portanto, o Banco Mundial (sim, o “pavoroso” Banco Mundial dos meus tempos de adolescência) afirma em relatório que o sistema educacional cubano é o melhor da América Latina e do Caribe, destacando os usos e abusos de algumas medidas simples como: a proximidade entre o órgão gestor do sistema (o Ministério da Educação) e as instituições de formação de professores e o emprego de 72% da carga horária dos cursos de formação de professor para atividades de prática de ensino no interior das escolas: são 5.600 horas que ajudam a fazer a diferença em relação, por exemplo, ao Brasil (Bruns; Luque et. al, 2014). Para resumir a história, o sistema cubano está entre os melhores do mundo, juntinho aos de Singapura, Finlândia e Canadá.
Em 2009, o súbito interesse de parte da elite econômico-financeira brasileira pela educação pública resultou na tradução a baixo custo do livro Cuba’s Academic Advantage:  Why Students in Cuba Do Better in School (2006) [A vantagem acadêmica de cuba: por que seus alunos vão melhor na escola] (Fundação Lemann, 2009). Os “segredos para o sucesso” da Ilha, segundo Martin Carnoy, Amber Gove e Jeffery Marrshall (2009, p. 156), são mantidos, desde o estudo realizado na década de 90 do século passado:
Em Cuba, ironicamente, as escolas dirigidas pelo governo são organizadas para funcionar como muitas empresas privadas tradicionais das sociedades capitalistas. Elas supervisionam seus funcionários-gerentes, ajudam-nos a aumentar a produtividade, a conhecer melhor seus clientes e a monitorar o produto escolar com cuidado.
Como os termos acima são bastante ofensivos aos meus ouvidos de “ex-revolucionário”, vou replicar a citação em expressões mais palatáveis:
Uma das chaves para o sucesso cubano em educação é o recrutamento, para o magistério, dos melhores alunos do ensino médio e a excelente formação que lhes é dada, ao redor de um sólido currículo. Outra é a garantia de que os alunos são saudáveis e estão bem alimentados. E a terceira é o sistema de tutoria e supervisão dos professores, focada na melhoria da instrução.
Mas o elemento crucial é o compromisso total com a melhoria dos padrões de ensino e fazer o que for necessário para que esse padrão chegue até as salas de aula do menor vilarejo das regiões mais pobres (Carnoy; Gove; Marshall, 2009, p. 18. Grifos nossos).
Com todo o acúmulo de informação que temos sobre o Banco Mundial e os seus velhos planos de abrir o secundário e o superior ao setor privado, entre outros interesses, acho difícil discordar da razoabilidade das suas conclusões.

* * *
Todo esse preâmbulo, em síntese, produzi para apresentar as seguintes questões: (1) se a educação escolar cubana, comparada a dos países da América Latina, Caribe, América do Norte, Europa, Ásia e Oceania é considerada de excelência (dentro de uma provável aceitação do leitor sobre a razoabilidade referida acima), por que emprego do currículo nacional, estruturado em “materiais instrumentales” (língua espanhola e matemática), “noções elementales” (sobre a natureza e a sociedade), “atividades” (educação física, laboral e estética) e “asignaturas” (história de Cuba, geografia de Cuba, ciências naturais, educação física) é reconhecido com um dos pilares do sistema? (2) Qual é o lugar da história dentro desse currículo altamente centralizado em um país de proporções espaciais e de contingente populacional reduzidos?
Um currículo a serviço da Revolução
A resposta à primeira questão é simples e já foi comunicada por vários especialistas ao tratarem do ensino de história como memória nacional em diversos países. Um dos trabalhos mais conhecidos no Brasil sobre o tema é o livro de Marc Ferro, intitulado Comment on raconte l’histoire aux enfants à travers le monde entier (Paris: Payot, 1986). Aqui vou me restringir ao mais recente tese defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília: Guerrilhas da memória - Estratégias de legitimação da Revolução cubana (1959-2009), de Giliard da Silva Prado, orientada pelo professor Jaime de Almeida.
O título já torna público o segredo: para legitimar a Revolução e a manutenção do grupo que está no poder há quase 60 anos foi necessário criar uma série de estratégias de representação, escrita, reescrita, uso e reuso do passado cubano. Prado examinou algumas dessas medidas: a metamorfose dos discursos comemorativos da Revolução, as relações de “amizade/inimizade” entretidas com os Estados Unidos e a União Soviética, e a ação discursiva e repressiva dos tribunais revolucionário sobre os “inimigos [internos] da pátria” (Prado, 2013).
Ele mostrou como os discursos foram moldados ao sabor dos contextos econômico e político e delineou quatro momentos característicos para essa história: a fase “nacionalista e democrática” (1959-1961), a “socialista e marxista-leninista” (1961-1969), a fase do socialismo atrelado às reformas da União Soviética (1970-1979), e a volta ao “nacionalismo revolucionário” (1980-2014). Em metáforas mais prazerosas, o Estado cubano inicia a sua propaganda com tons verde-oliva, passa ao vermelho (nativo), ao vermelho” (soviético) e, por fim, volta ao verde oliva dos anos 1950. Será que apresentará uma nova tonalidade com o início do fim do “bloqueio”, anunciado há 15 dias? Será que as relações de “amizade/inimizade serão modificadas quando o "outro" for os EUA?
EUA ignora as orientações da ONU contra o embargo.
Para a nossa sorte (ou azar), Giliard Prado não examinou os desdobramentos dessas fases no currículo nacional de história, tampouco o especialista Martin Carnoy, velho conhecido entre os brasileiros, por seus trabalhos demandados por instituições financeiras internacionais (nada contra essa vinculação, em princípio). Os dois especialistas não se ocuparam dos saberes de Clio a ensinar: quais conteúdos substantivos foram selecionados ao longo de seis décadas? Quais memórias foram construídas? Quais contradições, permanências e mudanças foram verificadas? O programa nacional de história é qualitativamente semelhante aos programas de matemática, por exemplo, ou seja, eles são sintéticos, aprofundados e sofisticados em relação ao Brasil e ao Chile (países estudados por Carnoy)? Os livros didáticos seguem ao pé da letra o programa nacional? A formação em história é realizada majoritariamente no interior das escolas? Os mestres das escolas básicas fazem a tutoria dos futuros professores de história? É possível distinguir “pensar historicamente” de “doutrinar para determinada ideologia” em situação real? 
Essas perguntas e muitas outras (inclusive as que surgem no momento do “desbloqueio”, relacionadas à formação dos novos jovens cubanos) devem ser respondidas por Ana Luíza Araújo Porto (IFET/AL), aprovada em doutorado, recentemente (3, dez. 2014), no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe com projeto que esmiuça o ensino de história em Cuba. Da minha parte, neste texto, apenas abro, principalmente para a interessada, Luiza Porto, o varedo que a conduzirá ao conhecimento aprofundado do lugar da disciplina escolar história no currículo nacional prescrito pelo regime cubano, inclusive o que está exposto na rede mundial de computadores e que ela mesma divulgou no face book. Aqui, seguem as primeiras versões de resposta à segunda questão apontada há pouco.

O “Programa de Estudio” e a legitimação do maxismo-leninismo?
Na Ilha, a história é asignatura inserta no segundo ciclo da escola “primaria” (“Historia de Cuba” - 5º e 6º ano), em toda a “secundaria” (“Historia Antigua” e “Historia de la Edad Media” – 7º, “Historia Moderna” e “Historia Contemporánea” – 8º, história de “Cuba” [de los antecedentes de la nacionalidade y la nación cubana”, século XVI, até “La obra de la Revolución, década de 1990 do século XX] – 9º e na escola “media superior” (“Historia Contemporánea”, “Historia de América” – 10º, história “del Pueblo cubano” [do século XVI a 1952] – 11º, e “La República que soñó Martí” [do início do século XX a 1952] – 12º ano.  
Poster comemorativo.
À primeira vista e apressadamente, tendemos a classificar o programa nacional cubano como eurocêntrico: história antiga, média, moderna e contemporânea, intercalada com história nacional (Os curriculistas brasileiros já se livraram desse problema. Há 90 anos implantamos a organização integrada de conhecimentos históricos).
Se nos aproximarmos ainda mais, veremos que as expectativas são apresentadas do modo mais detestável (entre os pesquisadores de ponta na área): são listas de conhecimentos substantivos. Nada de verbos (habilidades, fazer o quê com algo). Quando descemos ao detalhe, aí é que aumentam as chances de o programa vir a ser rotulado de conservador, no sentido da seleção dos objetos do conhecimento histórico: são, efetivamente, as batalhas, as ideias e ações dos grandes homens. Mas, há uma singularidade em relação aos críticos brasileiros (anti-Cabral, anti-D. Pedro I, anti-Deodoro da Fonseca, enfim, anti-Médici): são, dominantemente, as batalhas, as ideias e as ações dos grandes homens que construíram a Cuba do século XX (José Martí ganha relevo), antecedidos da pré-colônia, colônia e encarnados nas tentativas de independência, de neo-colonização, Revolução e manutenção da Revolução.
Quem viveu os anos 1980, como eu, e foi simpático à Cuba – ouvindo Caetano Veloso cantarolar “mamãe eu quero ir à Cuba, quero ver a vida lá” – pode rapidamente justificar tal opção, usando o velho e (outrora?) sábio Plekhanov (1995, p. 199):
os indivíduos exercem uma influência considerável no destino da sociedade, mas esta influência é determinada pela estrutura interna dessa sociedade e pela sua relação com outras sociedades. [...] Assim, as qualidades pessoais dos homens eminentes determinam as características individuais dos eventos históricos; e o elemento acidental [...] desempenha sempre um papel no curso destes eventos, cuja orientação é determinada [...] pelo desenvolvimento das forças produtivas e pelas relações mútuas entre os homens e o processo econômico-social de produção.
Todavia, os que não demonstram “boa vontade” com o sistema cubano, também e imediatamente, vão afirmar: não há nada de renovado na seleção de conteúdos substantivos e, consequentemente, nas concepções de aprendizagem e de ensino (limitando-se, é claro, ao currículo prescrito e divulgado na Internet hoje). Trata-se de um dos tipos mais conhecidos da história exemplar (e se é exemplar, não pode ser crítica. Será?). Uma história de grandes homens por seus pensamentos, tomadas de decisão e ação. Por traz desses fazeres humanos está um rígido sistema de valores comprometidos com determinada causa. Assim, a prescrição cubana indicaria um ensino de história retrógrado.
Obama e o início da solução sobre o embargo.
Não vou dizer que são retrógrados os que assim pensam. Ninguém é retrógrado em essência, mesmo que assuma essa condição publicamente. Fernand Braudel, por exemplo, defendia a a presença dos grandes homens no ensino de história e ainda fazia pilhéria: historiadores não gostam de grandes homens porque não há grandes homens exercendo o ofício do historiador. Nietzcshe, mesmo sem ser historiador, cultuou uma espécie de grande homem. Assim, nenhum colega que ler este texto se arriscará em classificar, por exemplo, esses dois “grandes homens” das humanidades como retrógrados pelas posições que tomaram e registraram por escrito. 
Saindo um pouco desse labirinto e voltando a atenção ao colega que manifesta antipatia à prescrição curricular cubana, quero lembrar que um fato complica o fechamento da sua equação sobre a ideia exemplaridade: o suposto telos que alimenta e prepara o conhecimento histórico e a consciência dos alunos foi atingido em meados do século passado - Revolução da década de 1950. 
Então as finalidades previstas e/ou inventadas pelos grandes homens teriam se transformado em mito de origem? Esse tipo de questão transforma o modelo cubano ainda mais interessante como objeto de estudo.
Vamos adiante. Sendo crítica ou exemplar, a história prescrita pelo programa nacional não é perfeita, ou seja, não atinge, evidentemente, os propósitos imaginados pelo regime. Escrevendo no interior de Cuba e a partir de entrevistas com os alunos do ensino superior, Lyen Labrador Urraca ([2007]) lista uma série de insuficiências geradas pelo programa ou a partir da forma de aplicação desse instrumento: dificuldades para expressar argumentos, valorizar a forma oral e escrita, identificar características de períodos históricos e estabelecer relações temporais entre acontecimentos. Quanto às causas, Urraca é enfático: o ensino superior é ineficaz na criação de estratégias para a aprendizagem da experiência dos grandes homens, para explorar os valores expressos por esses personagens e relacionar tais valores à vivência extraescolar dos alunos.
Se fosse possível materializar a voz do(s) autor(es) do programa, ouviríamos as seguintes respostas em sua autodefesa: “a história escolar em Cuba não pode constituir-se, dominantemente, na trajetória dos grandes homens. Concebemos história como vida (acontecimentos e processos) e conhecimento (fundamentado em leis). E o conhecimento histórico dá a compreender a origem e o desenvolvimento da espécie humana e dos povos, sendo a fonte de sentimentos e de ações que orientam homens e mulheres em suas respectivas vidas práticas” (Não exatamente com esses termos e ordem é o que aparece na introdução aos “Programas de Estudo” de história). Mas, seria esse o sentido construído pelo conjunto conteúdos substantivos listados no programa? Vamos deixar a resposta, mais uma vez, com a doutoranda Ana Luiza Porto. Importa agora encerrar essa postagem que já se excedeu mais que o esperado.

Conclusões
Como fiz nos últimos escritos, aqui no blog, tentei narrar fragmentos de uma experiência extranacional para inspirar (iluminar) as tarefas que se nos avizinham: a construção de uma nova Base Nacional Curricular Comum de história para a escolarização básica no Brasil e a posterior reforma das licenciaturas em história, ambos prescritos pelo Plano Nacional da Educação (2014).
Assim, partindo dos comentários sobre as prescrições cubanas, espero ter deixado claro que, nesse caso, a instituição de uma base nacional comum não exclui a história como disciplina acadêmica, tampouco reduz a sua importância entre os demais saberes que compõem o currículo. Aliás, em um Estado sob extrema pressão externa (e interna), a alternativa pela centralização foi exitosa como forma de controle social (o que os revolucionários e os ex-revolucionários têm pavor que aconteça no Brasil).
Por outro lado, a iniciativa estabeleceu as bases, pelo menos em outras disciplinas, para um bom acompanhamento da formação de professores, da ação dos professores no interior das escolas e, o mais importante, dos resultados da ação docente na vida prática dos alunos, quando adultos (Mesmo quem não entende de política educacional fica tiririca da vida quando perdemos no vôlei, basquete, box, atletismo, nos elogios ao sistema educacional e, recentemente, quando somos “invadidos” por milhares de médicos cubanos: como eles conseguem isso?!!!).
Evidentemente, não somente a prescrição centralizada bastou. Foram necessárias grandes doses de autoritarismo em várias dimensões da vida prática (a diminuição de expectativas da população letrada, quanto às possibilidades de escolher um ofício a partir da sua própria “razão” é uma delas). Os reduzidos espaço físico e contingente populacional também auxiliaram no combate aos problemas cruciais que ainda afetam sociedades modernas, a exemplo do subdesenvolvimento das capacidades humanas de ler e de compreender o que se está lendo. Contudo, é forçoso refletir: centralização, leitura, compreensão e alfabetização histórica em porções aceitáveis para a maioria da população somente são realizáveis em regime discricionário? Seleção de conteúdos substantivos, valores e estratégias mínimas, postas em uso em todo território nacional pelo Estado, somente são compatíveis com a legitimação de uma Revolução e de um grupo político no poder?
No extremo das elocubrações, questiono, por fim: teríamos que promover a luta armada e manter uma peleja de cinco décadas com os Estados Unidos e a China para ver os nossos alunos e professores de história estabelecendo relações lógicas de tempo e espaço, quando questionados, por exemplo, sobre as origens dos prováveis desvios de verba em milhares de obras financiadas pelo Estado, desde a construção de Brasília (para não sucumbir ao mito das origens - Ave François Simiand!) e as expectativas de fortalecimento do sistema representativo no país? Conhecimento, valorização, crítica e prática de  categorias como "público" e "privado", "ditadura" e "democracia", "neoliberalismo" e "social democracia" não deveriam pautar os currículos de história da educação básica de TODO o país? Ou esses valores, conhecimentos e atitudes seriam apenas conteúdos históricos reservados à formação de juízes paranaenses?


Para citar este texto
FREITAS, Itamar. "Base nacional curricular comum" em Cuba. Aracaju, 28 dez. 2014. Disponível em: http://itamarfo.blogspot.com.br/.


Para envolver-se com a discussão sobre a "Base nacional curricular comum", que está estreitamente relacionada ao tema "ideologia", acompanhe a série:

Referências
BRUNS, Barbara; LUQUE, Javier et. al. Professores excelentes: como melhorar a aprendizagem dos estudantes na América Latina e no Caribe. Washington: Banco Internacional de Reconstrucción y Fomento/Banco Mundial, 2014.
CARNOY, Martín. Educational reform and social transformation in Cuba, 1959-1989. In: CARNOY, M.; SAMOFF, J. Education and socal transition in the Third World. Prnceton: Princeton University Press, 1989.
CARNOY, Martin; GOVE, Amber K.; MARSHALL, Jeffery H. A vantagem acadêmica de Cuba: por que seus alunos vão melhor na escola. São Paulo: Fundação Lemann, 2009.
CARNOY, Martin; GOVE, Amber K.; MARSHALL, Jeffery H. Cuba’s Academic Advantage:  Why Students in Cuba Do Better in School.  Palo Alto, CA:  Stanford University Press, 2007.
FERRO, MARC. Comment on raconte l’histoire aux enfants à travers le monde entier. Paris: Payot, 1986.
GASPERINI, Lavinia. The Cuban Education System. Country Studies Education Reform and Management Publication Series. v. 1, n. 5, jul. 2000.
Learning in Latin America and the Caribbean]. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/. Consultado em 1 dez. 2014.
PLEKHANOV, Georgi. O papel do indivíduo na história. In:GARDINER, Patrick. Teorias da história. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.  pp. 170-205.
PRADO, Giliard da Silva. Guerrilhas da memória: estratégias de legitimação da Revolução Cubana (1959-2009). Brasília, 2013. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Brasília.
Programas de Estudo [de historia de Cuba]. Disponível em: http://historia.cubaeduca.cu/. Consultado em: 5 dez. 2014.
URRACA, Lyen Labrador. Algunas consideraciones sobre la enseñanza de la historia de Cuba. Disponível em:  http://www.monografias.com/trabajos45/ensenanza-de-historia/ensenanza-de-historia.shtml#evol. Consultado em 12 jun. 2013.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Menos doutrinação e mais objetividade no jornalismo!

Ilustração produzida a partir do logotipo da coluna de Rodrigo Constantino.
Nas últimas quatro semanas, a mídia impressa de grande circulação no país veiculou exageros e apelos apocalípticos. Tudo muito previsível quando o tema corrente era a eleição presidencial. A eleição acabou. Contudo, e infelizmente, a cultura do medo de uma hipotética “cubanização” do Brasil continua e, depois da saúde, o alvo é, mais uma vez, a educação, em particular o ensino no campo das humanidades.
O filme é antigo. Lembra as denúncias de Ali Kamel sobre um suposto patrocínio do Estado brasileiro aos livros didáticos que positivavam stalinistas e maoístas: “nossas crianças estão sendo enganadas, a cabeça delas vem sendo trabalhada, e o efeito disso será sentido em poucos anos” (O Globo 19/09/2007). A diferença, dessa vez, é a qualidade inferior dos argumentos, disparados pelo jornalista Rodrigo Constantino em sua coluna no portal de Veja (8/11/2014), cuja mensagem é bem sintetizada na frase-título: “Chega de doutrinação marxista nas escolas!”
Vamos poupar o leitor dos detalhes (http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/socialismo/chega-de-doutrinacao-marxista-nas-escolas) e comentar o fundamental da sua peça publicitária: a generalização infundada, a desinformação e, talvez o pior de todos os equívocos, a contradição.
Constantino é frouxo no uso de termos centrais de seu argumento. Ele reproduz, de modo simplista, a oposição entre capitalismo e comunismo, proposta por duas adolescentes: sua filha e uma amiga. Ainda se satisfaz em tripudiar da amiga da filha que ousou criticar, em sua inocência juvenil, o capitalismo (mesmo tendo mãe empresária). “Que poço de contradições essa menina”, parece implicitamente sugerir Constantino com seu irônico comentário: “só faltou culpar o capitalismo pela miséria africana”.
Daria até um bom debate a reflexão sobre a miséria africana a partir da velha tese leninista do imperialismo europeu como fase superior do capitalismo. Mas o polemista da Veja, provavelmente, não toparia o confronto. A simples referência ao nome Lênin causar-lhe-ia espasmos.
O "perigo vermelho" ilustrando uma definição
não fundamentalista de ideologia
Antes de Lênin, contudo, existe Marx: alvo das estocadas de Constantino. E antes da inocência juvenil das meninas existe a escola e seus professores, ideólogos e doutrinadores das ideias do ameaçador velho barbudo comedor de criancinhas. O colunista de Veja afirma que a nossa “elite de esquerda” repete a ladainha das adolescentes (comunismo, socialismo e ideário de esquerda são farinha do mesmo saco), reduzindo a teoria social de Marx a outra sentença mágica: “desejar que os mais pobres tenham os mesmos bens que os mais ricos”.
O ideólogo-jornalista, arvorando-se portador de grande objetividade analítica, afirma não existir “nada mais falso” que esse axioma. Para ele, a verdade reside em outro lugar. Ele professa e divulga, doutrinariamente, um liberalismo radical (econômico e moral), que desemboca no elogio da meritocracia, do mercado, do individualismo e dos fundamentos da desigualdade humana.
Não bastasse a ligeireza analítica, Constantino também demonstra desconhecimento. Fazendo uso da experiência de Gustavo Ioschpe, que “tem ficado estarrecido com a doutrinação marxista nas escolas particulares do Brasil”, o jornalista se equivoca ao generalizar. O país possui milhares de “escolas particulares”. Se esse tipo de silogismo for legitimado, poderemos também afirmar que “a intolerância é dominante nas escolas católicas e evangélicas de Brasília, onde alunos chegam a regozijar-se com a morte “dos viadinhos”, quando determinado professor de história discute o genocídio patrocinado por nazistas alemães. E temos certeza de que a maioria dos alunos de escolas evangélicas e católicas não age assim.
Usando o bom senso, entretanto, ou a empiria nossa de cada dia, sabemos que a prática da doutrinação marxista não tem a dimensão alardeada pelo articulista. Não tem, por exemplo, porque a formação inicial de professores de história não está (mais) fundamentada em pressupostos marxistas, não tanto quanto as análises de grande parte dos lúcidos economistas liberais sobre a realidade brasileira.
Se a doutrinação marxista efetivamente campeia nas “escolas particulares”, alguma coisa está errada: ou os professores têm sido pouco competentes no trabalho de doutrinação (já que o candidato Aécio foi o preferido de 51 milhões de eleitores) ou os alunos não consomem a suposta doutrinação marxista do mesmo modo que os supostos professores doutrinadores marxistas assim o desejariam.
Constantino parece não saber que a ideia de uma educação escolar (e de qualquer formação de pessoas) sem ideologia é também ideológica e, transformada em fenômeno ideal-típico, não correspondente à vida prática, ou seja, é uma utopia (às avessas). Nos anos 80 do século passado, muitos leitores dos leitores de Marx fizeram a mesma análise aligeirada acerca dos livros didáticos de história, tentando desvelar a ideologia liberal nos textos escritos e icônicos desses livros. O avanço da pesquisa na área, felizmente, demonstrou que não há sociedade desideologizada e o dístico do jornalista (“Análise de um liberal sem medo da polêmica”) é fato. Também não há ideologia boa e ideologia ruim em essência. A ideologia dos autores/editores, presente nos livros didáticos, no Brasil e fora dele, (como asseverou o professor Kazumi Munakata) é o mercado.
A desinformação também marca o texto de Constantino. Ele afirma (ainda usando Ioschpe) que estão “espalhando o marxismo por aí, sem que os pais saibam ou façam algo a respeito”. Ora, o marxismo está “espalhado por aí” desde o início do século XX, inclusive nos currículos do governo “liberal” de Getúlio Vargas e, mesmo, em manuais de história curiosamente tolerados pelos censores de nossa última ditadura militar. Se for verdadeira a afirmação de que os pais não sabem disso, estamos diante de fenômenos muito bem estudados pelos pesquisadores da(s) família(s) e do(s) Estado(s).
Um deles é a mudança nos modelos de organização, nos quais a atribuição do acompanhamento escolar dos filhos fica(va) a cargo de criadas, avós e, adiante, da mãe. Como as famílias extensa e nuclear, há muito, deixaram de ser dominantes (se é que algum dia o foram), a sugestão de que o marxismo se alastra nas “escolas particulares” faz, então, da “denúncia-manifesto” de Constantino uma espécie de juris sperniante.
Ideologia demais...ideologia de menos!
Aliás, alguém teve a infeliz ideia de incluir na Constituição de 1988 que a educação (sugestivamente escolar) é dever também da “família”, mas, como diz o professor Fábio Alves, não consultou a “família” (brasileira?), nem deixou claro o quê ou quem seria essa “família”. A responsabilização dos professores, para o bem ou para o mal (mais para o mal dos professores, inclusive), pela integral educação dos nossos filhos, é uma tendência ocidental.
Fragilidade conceitual, generalização infundada e desinformação são adjetivos adequados para qualificar o artigo em análise. Contudo não poderíamos encerrar esse comentário sem apontar o principal equívoco do profissional que se esmera em persuadir o leitor de Veja: a contradição. É inacreditável que Constantino cobre objetividade de professores se ele mesmo pratica um jornalismo tão ideologizado. Ele acredita que com frases feitas possa convencer alguém (sem nenhuma seriedade probatória, nem que fosse por silogismo). Depois do elogio do capitalismo, da economia liberal, da livre concorrência (que melhorariam a vida dos pobres), ele conclui com a muito científica observação: “todas as experiências comprovam o que a teoria explica”. Que experiências? O que cobra dos professores poderia ser cobrado do jornalismo que pratica: menos doutrinação e mais objetividade!

Para citar este artigo:
FREITAS, Itamar; GUIMARÃES, José Otávio Nogueira. Menos doutrinação e mais objetividade no jornalismo! Brasília, 9 dez. 2014. Disponível em: http://itamarfo.blogspot.com.br/2014/12/menos-doutrinacao-e-mais-objetividade.html.

Para conhecer outra denúncia sobre o mal que representa a ideologia na escola, acompanhe a mensagem do Padre Ricardo. 


segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

“Base nacional comum” na África do Sul (1997-2014)

Rainbown nation
Existe base nacional curricular comum na África do Sul? Se ela existe, quais desdobramentos a sua instituição provoca sobre o estatuto disciplinar da história? Nesse texto, dou sequência à discussão sobre o tema que nos tem animado nos últimos cinco dias (e, hoje, Luis Fernando Cerri, da UEPG, prometeu juntar-se a nós). Ao final, como na postagem anterior, efetuo comparações, novamente, assimétricas, entre a situação da África do Sul e a do Brasil.
A África do Sul passou por um período ruptura (que resultou, excepcionalmente, em unidade) e de posterior refundação identitária, imediatamente após o fim do regime de Apartheid, em 1994, e a transição do poder à maioria não branca. Nesse contexto, dois modelos disputaram a primazia dos novos traços diacríticos a serem construídos: o padrão étnico e o padrão democrático (Guyver, 2007; Welton, sd.). Ao que parece, o modelo democrático saiu vencedor.
Isso implicou em mudanças radicais na formação de pessoas, como a instituição da escolarização obrigatória universal, a elaboração de um currículo nacional de feição inclusiva ou, mais que isso, um currículo de base multiculturalista. O curso das mudanças foi, assim, marcado pela adoção de interpretações alternativas à versão nacionalista Afrikaner, incorporação da história social, valorização da história do mundo, e pela a adoção da história integrada no 12º ano da escolarização básica (Eeden, 2010, p. 111). O novo desenho dos currículos, peça politicamente orientada por excelência, contou com a participação de historiadores das universidades de KwaZulu-Natal, Stellenbosch e Cape Town. Entre as mais calorosas discussões estavam o valor da cronologia e as frágeis “ligações entre os temas globais, nacionais e locais” (Eeden, 2010, p. 113).
Para o que nos interessa nessa série de estudos sobre a “base nacional curricular comum”, importa admitir que a África do Sul optou por um “currículo nacional”. Em linguagem brasileira, a África do Sul, em momento de ruptura, não produziu “diretrizes” ou “parâmetros”. Ela adotou um “programa” de história para todo o país. Dizendo de outro modo, as diretrizes são a própria Constituição da África do Sul, promulgada em 1996, e programa é o “Currículo Nacional Oficial para os anos 0-12” [The National Curriculum Statement Grades R – 12] (NCS).

Da Constituição ao currículo nacional
O Currículo nacional da África do Sul foi criado em 1997, revisado em 2000 e em 2009. Desde 2012, currículos para os anos R-9 e para o 10-2 foram unificados, dando origem ao atual NCS. Fazendo uma analogia para o nosso melhor entendimento, operou-se algo idêntico ao caso brasileiro, que incorporou todas as diretrizes (ensino fundamental, médio etc.) em apenas um documento (Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais, de 2010).
O NCS traduz, assim, os princípios da Constituição de 1996: sanar as divisões do passado e estabelecer uma sociedade baseada em valores democráticos, justiça social e direitos humanos fundamentais; promover a igualdade de vida para todos os cidadãos e a liberdade de cada pessoa; estabelecer as bases para uma sociedade democrática e aberta na qual o governo baseia-se na vontade do povo e todo cidadão é igualitariamente protegido pela lei; e construir a unidade democrática da África do Sul capaz de ocupar legitimamente o seu lugar de direito na família das nações (South Africa, 2006, p. 4).
Decodificando tais princípios em expressões mais curtas, o NCS fundamenta-se na “transformação social”, no “pensamento crítico”, em “conhecimentos e habilidades” sofisticadas, “progressão”, valorização dos saberes nativos e dos direitos humanos”, “credibilidade”, “qualidade e eficiência” e “promoção de uma educação comparável aos outros países em qualidade, extensão e profundidade”.
Observem que os princípios do NCS não reproduzem tal e qual os princípios constitucionais (novamente, a analogia, como faz a nossa LDBN em relação à constituição de 1988 e as antigas diretrizes à LDBN). Eles os interpretam. O mesmo ocorrem com os objetivos que são estruturados em habilidades: “identificar e resolver problemas e tomar decisões usando o pensamento crítico e criativo”, “trabalhar individual e coletivamente”, “organizar e cumprir suas atividades responsavelmente”, “buscar, analisar, organizar e avaliar informação”, “comunicar-se empregando habilidades de leitura em variados suportes” (visuais, escritos, simbólicas), “empregar ciência e tecnologia responsável e criticamente em benefício do desenvolvimento e da saúde dos outros” e “compreender o mundo como um conjunto de sistemas correlacionados” (South Africa, 2006, p. 10). 
Multiculturalismo
Tratamos dos princípios e objetivos. Agora, sigamos aos componentes curriculares. O NCS é estruturado em áreas que podem ou não coincidir com as nossas conhecidas disciplinas escolares. Para os primeiros três anos (foundation phase) são obrigatórios a aprendizagem da “língua [da casa]” (primeira língua), de uma “segunda língua”, “matemática” e “habilidades para a vida” (saúde, arte e primeiros conhecimentos científicos). Do 4º ao 6º ano (intermediate phase), são acrescidas as áreas de “ciências naturais” (incluindo-se a “tecnologia”) e as “ciências sociais”. As “habilidades da vida” também ganham novos conhecimentos: “educação moral” e “educação religiosa”. Do 7º ao 9º ano (senior phase) as áreas se mantém, com a ampliação de “tecnologia” e de “ciências de gestão econômica”.  Por fim, nos anos 10º, 11º e 12º (further education and training phase), além da base instituída desde os anos iniciais (língua [de casa], segunda língua, matemática e habilidades para a vida), os alunos podem escolher três outros objetos (entre os listados ao final do próximo parágrafo).
Toda essa estrutura culmina com a avaliação que possibilitará ou não a entrada do aluno em um curso de nível superior. Ao final de 12 anos de escolarização, ele pode receber o Higher certificate se obtiver um escore de 40% no exame de, ao menos, três objetos (entre os quais a primeira e a segunda língua) e 30% em outros três. O Diploma, por sua vez, é concedido aos que obtém de 40% a 49% em quatro objetos de estudo. Já o Bachelor’s Degree, esse só é acessível aos que atingem o escore de 50% a 59% ou mais, em quatro objetos de estudo, escolhidos entre os seguintes: “accounting”, “ciências agrícolas”, “negócios”, “artes dramáticas”, “engineering graphics and design”, “geografia”, “história”, “consumer studies”, “tecnologia da informação”, “línguas”, “ciências da vida”, “matemática”, “alfabetização matemática”, “música”, “ciências físicas”, “estudos de religião” e “artes visuais” (South Africa, 2011a).

Do currículo à disciplina e ao livro didático de história
Conhecemos os componentes curriculares e a lógica de seleção para a entrada no ensino superior. Vimos que há, efetivamente, uma base comum de conhecimentos (áreas), progressivamente ampliada, culminando, no 12º ano, com a possibilidade de opção de estudos (ainda que a base seja mantida, mesmo no último ano da escolarização). Mas o que dizer da história? Qual a sua situação em um currículo nacional que, na fria letra da lei, privilegia a constituição do currículo nacional por áreas?
Inclusão
A história está presente dos anos 4º ao 12º. Na 2ª e 3ª etapas (itermediate phase e senior phase), entretanto, está incorporada na área das “ciências sociais” [Social Sciences]. Contudo, em todos os programas das ciências sociais, a história mantém espaço reservado em termos de objetivos (“criar o interesse e o prazer pelo estudo do passado”, por exemplo), habilidades específicas (“compreender o valor das fontes para o estudo do passado”’), sugestões de aplicação das habilidades históricas específicas (“reconhecer variadas fontes – diários, cartas, notebooks”), metodologia de ensino (construir um museu ou escrever uma biografia), conhecimentos (tópicos – “o mundo por volta de 1600” – e em subtópicos –  “governo e sociedade do Império Mughal/Índia), formas de avaliação (realização de projetos, aplicação de testes ou  exames clássicos), quantidade e modelos de questão para os exames (“Como a Guerra Fria modificou as relações internacionais após a II Guerra Mundial?”), níveis progressivos de exigência para julgar o desempenho dos alunos (baixo – conhecer e lembrar, médio – compreender e aplicar, e alto – analisar, avaliar e sintetizar).
O nível de prescrição dos programas chega ao detalhe de estipular a quantidade de horas para o ano letivo (35 semanas para o 10º ano), para um tópico (uma semana para a Revolução Francesa) ou a duração de um exame, constituído por seis questões (3 horas).
No que diz respeito ao livro didático, a adoção de um currículo nacional altamente prescritivo parece não ter abalado a sua importância. O contrário é o que observamos, limitados à literatura aqui citada. O que reforça essa hipótese é a própria mudança evidenciada nos seus conteúdos conceituais substantivos, ainda que não na velocidade que os pesquisadores desejavam.
Em 2002, após a primeira revisão dos NCS, Sascha S. Polakow-Suransky denunciava, por exemplo, que muitos manuais de história do tempo anterior ao Apartheid circulavam nas escolas da África do Sul, negando “a colonização e conquista europeia” e afirmando que “brancos e negros chegaram simultaneamente a uma desabitada África do Sul” (Polakow-Suransky, 2002, p. 1). Trata-se do mito do “grande vazio”, disseminado em livros do final do século XIX, como também denunciou Melanie Walker (1990), quatro anos antes do fim da política de segregação. Mas nada igual aos manuais do primário, da década de 80 do século passado, que pregavam a “superioridade dos brancos sobre os negros em razão de [os brancos serem] uma civilização mais antiga”, o “Afrikaner como militarmente inteligente e forte e os ingleses, negros e comunistas como seus inimigos principais”, e a “autoridade do Estado, fundada sobre a sanção divina” (Carpentier, 2000, p. 189).
Apesar da extinção da história como componente curricular em 1997 (entendendo componente curricular como elemento primeiro do currículo nacional – “língua [da casa]”, “matemática” entre outras) e da sua inclusão como objeto de conhecimento das ciências sociais, os livros didáticos de história continuaram a ocupar lugar destacado no cotidiano docente. A prescrição do NCS, mesmo por área, transformou o livro didático de história em meio de divulgação de novas interpretações sobre o passado da África do Sul. A biografia de Nelson Mandela, por exemplo, foi apresentada como modelo de combate “pela liberdade de negros e de Brancos” e os Afrikaners não mais são vistos como “povo eleito” (Carpentier, 2000, p. 195).
O livro didático permaneceu também com veiculador de utopia nacionalista, não tanto em termos de pluralismo étnico, mas ainda como ferramenta de unidade nacional sob a ideia de democracia. E democracia, abertura da África do Sul para o mundo (ampliação da história mundial, inclusão de temas como a globalização, entre outros), são, efetivamente, resultantes de prescrições emanadas do NCS.



Conclusões
O que tentamos explicitar acima foi o fato de a África do Sul ter entendido como seu novo regime de historicidade a experiência inaugurada a partir de 1994. Essa percepção teve origem, em grande parte (para o que nos interessa diretamente), no interior das universidades, entre os historiadores, sobretudo da Universidade do Cabo. A necessidade formação de pessoas dentro de um projeto nacional (identidade e Estado) democrático e não racialista (uma novidade) gerou um consenso em relação à produção de um currículo nacional, evidentemente, bastante prescritivo, embora não revanchista. No Brasil, 1985 não é baliza consensual, mas pode, hipoteticamente (para fins de discussão) ser considerado o marco de um novo presente. Aqui também os currículos de história foram considerados instrumentos para a construção de uma sociedade democrática. Contudo, nem as fraturas sociais ganharam magnitude idêntica à da África do Sul, nem as vozes historiadoras contrárias ao regime militar estavam tão cerceadas no ambiente universitário.
Consideradas as versões marxistas sobre o processo brasileiro, podemos afirmar que toda espécie de “ismo” de esquerda ocupou certo espaço nas salas de aula, na pesquisa e nos impressos (vamos esperar o livro de Rodrigo de Pato Sá, que trata do assunto). Contudo, a solução final em termos de formatação de novos currículos para a educação básica, por motivos que não vamos aqui discutir (já estamos nas conclusões), não foi a construção de um documento nacional, e sim a elaboração de documentos estaduais, refletindo disputa coetânea e anterior à Abertura (redemocratização, fim da ditadura etc), entre os vários agentes que vendiam a renovação política (no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, por exemplo). Dizendo de outro modo, a ditadura militar, na política educacional brasileira, não representou um Apartheid e a ideia de documento nacional, no Brasil, pode ter sido entendida como ranço autoritário. Em suma, currículo nacional dá um sopro de nova vida a povos altamente segregados e representa o suspiro da morte para povos que já se consideram unificados (pela cordialidade, jeitinho, pelo amor ao verde e amarelo de Getúlio Vargas, pelo futebol etc. etc.).
A outra consideração tem a ver com o status da história: disciplina ou conteúdo de área? Com a experiência da África do Sul, penso que podemos concluir com a seguinte máxima: não importa o rótulo, não importa o ano escolar no qual esteja situada. A história reina independente como saber escolar. E reina forte. Em um país que se esforçou para refazer os livros didáticos, dotando-os de novas representações sobre o passado, com vistas a um presente de reconciliação, ou seja, em uma situação extrema, muito distante do que passamos hoje no Brasil, a história transformou-se em conteúdo das ciências sociais e permaneceu com tempo e espaço bem demarcado, material didático independente e, ainda mais, fruto de polêmicas intermináveis.
Depois de fazerem desaparecer o excepcionalismo e o racismo de Estado de suas páginas, mediante um currículo nacional, os livros de história são desafiados a não inverterem os sinais racistas – de segregação negra à segregação branca (Engelbrecht, 2008) –, a tornarem efetivos tanto a inclusão de questões de gênero e meio ambiente, valores democráticos, quanto a integração da história nacional com a história mundial (sem as ilusões vendidas pelos entusiastas do processo de globalização, ou seja, sem tornar a experiência sul-africana em um ingênuo apêndice dos interesses de conglomerados transnacionais). Alguma coisa diferente do Brasil? Sim: o nosso medo em relação ao novo. Mas, sejamos compreensivos com nós mesmos. Somos humanos e humanos têm medo.




Referências
CARPENTIER, Claude. Rupture politique et enseignement de l’histoire em Afrique du Sud: les manuels de l’enseignement primaire. International Review of Education, v. 46, n. ¾, p. 283-303, 2000. (Printed in the Netherlands).
EEDEN, Elize S. van. South Africa’s revised history curriculum on globalism and national narratives in grade 12 textbooks. História, v. 55, n. 1, p. 110-124, mei./ maiy., 2010.
ENGELBRECHT, Alta. The impact of role reversal in representational practices in history textbooks after Apartheid. South African Journal of Education. v. 28, p. 519-541, 2008. Disponível em: http://www.scielo.org.za/pdf/saje/v28n4/a05v28n4.pdf Consultado em: 30 nov. 2014.
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POLAKOW-SURANSKY, Sasha S. Historical Amnesia? The Politics of Textbooks in Post-Apartheid South Africa. Paper presented at the Annual Meeting of the American Educational Research Association. New Orleans, April 1-5, 2002.
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Fontes das imagens: 
Excetuando-se a fotografia (no topo da postagem), todas as ilustrações foram extraídas de SOUTH AFRICA (2006).