domingo, 9 de novembro de 2003

Histórias da BR-101


E estrada tem história? – Claro que tem! É um artefato. É um produto  da ação humana, e tudo o que provém do humano interessa ao historiador. Em teoria é assim. Bem professoral a resposta. Mas, e na prática? O que se faz para contar a história de uma estrada, ou melhor, de uma rodovia que está completando trinta e quatro anos de serviços prestados aos moradores de Sergipe? Uma alternativa é pôr os olhos sobre as comunidades marginais, ampliadas ou mutiladas, pelo tronco norte da BR 101, fato ocorrido com Bananeiras, São Francisco e Cruz da Donzela.

Sem informações detalhadas sobre o empreendimento, não sabemos se a história da BR 101 contempla alguns capítulos sobre superfaturamento de serviços. Por hora, a história vivida às margens da via é bem outra, mais saborosa que a atual novela da duplicação. Vejamos, então, algumas dessas narrativas, elaboradas, sob orientação do professor Jorge Carvalho, no ano passado, por três alunas do curso de licenciatura em História da UFS/PQD-Propriá.

Vista parcial da zona urbana de Malhada dos Bois-SE,2008. 
Hermeson de Menezes
 Conta Luzia Santos (2002) que, no município de Malhada dos Bois, vivia uma pequena população concentrada em torno de uma igreja, rendendo culto à Santa Guilhermina. Guilhermina, reza a lenda, era o nome da donzela assassinada pela “sanha bestial” de um provável estuprador. Morta a virgem, ergueram uma santa cruz à sua lembrança. Daí o povoado vir a ser conhecido como Cruz da Donzela.
Tudo ia muito bem na vida dessa comunidade de agricultores até o início dos serviços de pavimentação da BR 101. Com a chegada dos operários, o pequeno comércio animou-se. Depois, vieram os caminhoneiros. Com eles, instalaram-se postos de gasolina, bares, churrascarias e, aos fundos destes estabelecimentos, os “cabarés”. A presença das profissionais do sexo, no início dos anos 1970, logo expandiu os negócios na região. O aumento do número de moradores foi ampliando o povoado até as margens da rodovia.
Na primeira metade dos anos 1980, o pólo de lupanares registrados com nomes Deusa do Asfalto, Deusa da Noite, Safare, Girassol, Roda de Fogo, Mineira, Cortiço do Baiano e mais, Creuzinha, Luana’s Bar, Zica, Léo, e Cida fez a fortuna de lavadoras de ganho, vendedores de perfume e de roupas, e de bodegueiros. Melhor para estes, pior para os romeiros de Santa Guilhermina, que foram obrigados a se afastar do local tornado “impuro”. Pior para as senhoras casadas, confundidas com prostitutas; para as autoridades preocupadas com combate ao rufianismo, tráfico de drogas, lesões corporais e homicídios ocorridos na “zona”. Pior mesmo foi para a imagem da povoação: Cruz da Donzela, o nome, virou figura de linguagem, ou piada entre “os populares” – Cadê as donzelas?
Ao contrário de Cruz da Donzela, a povoação de São Francisco só teceu louvores à chegada da BR 101. O benefício, contudo, não fora incorporado de imediato. São Francisco, sede do município do mesmo nome, teve que esperar uns quinze anos para ver pavimentados os mil e quinhentos metros que a separavam da via federal, é o que conta Jilvaneide dos Santos (2002).
Depois de asfaltado o acesso, três grupos, pelo menos, comemoraram a boa nova: os varejistas de roupas e calçados buscaram mercadorias na feira de Caruaru; os estudantes puderam freqüentar escolas em Propriá e em Penedo; e, por fim, o mais curioso, a rodovia fez surgir uma nova modalidade de serviços: o transporte de cargas e passageiros. Motorista virou profissão de prestígio em São Francisco. Com giro pequeno e ganhos rápidos em dinheiro, o caminhão, por exemplo, tornou-se uma empresa mais rentável que as pequenas propriedades agrícolas. (Passos Subrinho, 2001).
Alguns quilômetros adiante, o impacto da construção da BR foi devastador, segundo a memória de alguns moradores. Nos anos 1950, Bananeiras era uma espécie de entroncamento rodo-ferroviário; um ponto de passagem e de abastecimento para os moradores de São Francisco, Pau da Canoa, Lages, Poxim, entre outros. Com a chegada das obras, na virada de 1968 para 1969, paisagem, economia e cotidiano do lugar foram radicalmente modificados.
Lembram os moradores das “chuvas de pedras” provocadas pelas explosões; a transferência do cruzeiro, que fazia as vezes de igreja; o desvio do riacho canoinhas; a queda no comércio da água; a migração dos indenizados. O povoado Bananeiras foi dividido ao meio, e os moradores foram obrigados a compartilharem com os animais uma passagem subterrânea construída para evitar os atropelamentos, provocados pelo tráfego intenso. O problema é que  a galeria ficava inundada quando chovia, no início dos anos 1970.
Claro que o povoado lucrou com a venda de refeições aos operários; que depois de inaugurada a via transformou-se em ponto de propaganda e de escoamento para o melhor queijo do Estado. Mas, é certo, também, conclui Élia Andrade (2002), que a decadência de Bananeiras, verificada a partir dos anos 1980, tem forte relação com a chegada da BR 101.
No final destas pequenas histórias, fica a constatação óbvia de que as vias distribuidoras de riquezas modificam a estrutura das cidades “do interior” e alteram os valores de suas comunidades, até mesmo das que estão próximas a Aracaju, como São Cristóvão e Nossa Senhora do Socorro (cf. França, 1999). Mas, a rodovia, em si mesma, é mais efeito que causa de mudanças na política econômica. E é fato também que ninguém ganhou mais com a BR do que a própria Aracaju, que estendeu sua influência até para as cidades de Paripiranga, Geremoabo, Coronel João Sá e Santa Brígida (Diniz, 1987, apud. França, 1999, p. 59).
Para a vulgata administrativa, esses ganhos com a supremacia sobre as outras cidades não passam de um presente de grego. Não era bem a superlotação de hospitais o que se desejava, nem a ocupação desordenada das áreas de preservação ambiental. Contudo, mantendo o controle de um terço do eleitorado estadual, Aracaju não parece estimular discursos de combate à hiper-concentração de serviços e oportunidades em detrimento das demais cidades de Sergipe. Esperemos a duplicação para saber aonde é que essa história vai acabar.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Histórias da BR 101. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 09 nov. 2003.<http://itamarfo.blogspot.com/2010/10/historias-da-br-101.html>.


Referências bibliográficas
SANTOS, Jilvaneide dos. A cidade de São Francisco (1965/1985). São Cristóvão, 2002. Monografia (Licenciatura em História) – Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe.
SANTOS, Ana Luzia. Grandezas e misérias da prostituição feminina no povoado Cruz da Donzela (1869/2001). São Cristóvão, 2002. Monografia (Licenciatura em História) – Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe.
ANDRADE, Élia Barbosa. O povoado Bananeiras e a BR 101 (1940/1990). São Cristóvão, 2002. Monografia (Licenciatura em História) – Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe.
FRANÇA, Vera Lúcia Alves. Aracaju: Estado & metropolização. São Cristóvão: Editora da UFS, 1999.

4 comentários:

  1. Olá! Como eu posso ter acesso à monografia da Ana luiza Santos sobre a prostituição no povoado cruz da donzela? Se possível, como posso chegar ao contato com ela? Tenho interesse em produzir um documentário sobre o povoado CRUZ DA DONZELA. Grato!

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    1. Olá Ewerton,
      A monografia está no Programa de Documentação e Pesquisa Histórica, que fica no Departamento de História da UFS.
      Como faz tempo que não vejo Ana, segue um contato da rede, onde todos se encontram.
      http://www.facebook.com/photo.php?fbid=10150183415871564&set=a.10150183415866564.304397.719146563&type=1&theater
      Abração e boa sorte na empreitada.

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  2. Olá nasci aí neste povoado em 1973 fui embora com 2 anos de idade como faço pra ter notícias daí e quem sabe encontrar meus parentes a única coisa que sei e o apelido do meu pai era mané da cinuca ficarei grato por qualquer notícia

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