sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O ensino de História e formação do historiador: a experiência dos manuais de Introdução à História (I)

Caríssimos colegas, bom dia.
Gostaria de agradecer a presença de todos. Gostaria de parabenizar os programas de Pós-Graduação em Educação e em História da UFRN pela iniciativa de incluir o ensino de História na sua pauta de discussões e, por fim, também agradecer às professoras Inês Stamatto e Margarida Dias pelo convite e pela boa acolhida aqui neste Estado.
Minha fala neste curso enfatizará a relação ensino de história-formação do historiador, título que por si só já considero uma provocação. Trata-se de um texto iniciado no Encontro Regional da Anpuh do Ceará (Quixadá) e que está em vias de finalização.
Distribuirei a exposição em dois momentos: no primeiro, tratarei dos sentidos de ensino de história e de formação do historiador. Em seguida, exemplificarei tal relação em manuais de Introdução à História, produzidos no século XIX, na Alemanha e na França. Concluo a fala, transformando o título – “O ensino de História e a formação do Historiador” em uma questão e um convite.
Ensino de história e formação do historiador
O que entendemos como formação do historiador? Aliás, o que é ser historiador? Há anos que trabalho com uma noção de identidade difundida por Claude Lévy-Strauss (1977) de que o “ser” historiador realiza-se pela auto-definição e pelo reconhecimento dos seus pares – velha lição ainda válida em tempos pós-modernos.
Essa definição nos leva à compreensão de que a formação do historiador, ou seja, o processo de assunção de uma pessoa ao papel social de historiador pode durar anos e até mesmo décadas. Tal formação incorpora os modos pelos quais ele constitui a sua consciência histórica que ocorre, principalmente, na sua infância e adolescência, ou ainda, em casa, na comunidade, na escola junto aos professores (inclusive de História).
A formação também depende das instituições historiadoras das quais ele participa. No passado distante, os Institutos Históricos, Academias de Altos Estudos, Faculdades de Filosofia, e no passado recente, os cursos de graduação e de pós-graduação na área de História.
Quanto ao ensino de História, em que sentido utilizamos a locução cotidianamente? Ensino é entendido em função das disciplinas fundadoras da Pedagogia, das quais fazemos uso nas tarefas educativas – Filosofia, Psicologia, Sociologia, Antropologia, História, entre outras. Ensino também depende das nossas concepções e projetos para o mundo que nos cerca. Por tais condicionantes, costumamos entender ensino de história como processo de transmissão, aquisição, transposição, apropriação, construção de modos de agir, pensar e sentir, padronizados, ou seja, processos de criação/contestação de cultura, ou ainda, processos de socialização.
Que relações, por fim, podem ser estabelecidas entre formação do historiador e ensino de história? Penso que o título sugere uma relação necessária. Mas sugere também uma provocação. Duas entre várias teses podem ser desenvolvidas a partir do título: a primeira é a de que o ensino de história é processo fundamental a ser inserido nas estratégias de formação do historiador, notadamente, a estratégia da escolarização universitária. O título, entretanto, pode sugerir uma segunda tese bastante antipática aos ouvidos dos presentes: não há nenhuma relação entre ensino de história (escolar) e formação universitária do historiador.
Não faremos opção neste momento. Buscaremos uma resposta no tempo. Refletiremos sobre a relação ensino de história e formação do historiador em época muito longínqua – o século XIX –, em países muito distantes – a Alemanha e a França –, em concepções de história, aparentemente, ultrapassadas – o historicismo e o cientificismo –, em um gênero historiográfico, aparentemente, inexistente no ensino superior – o livro didático –, em uma disciplina fundamental para a aquisição dos rudimentos do historiador moderno – Introdução aos Estudos Históricos.
Ensino de história nos livros didáticos de Introdução à História
O livro de Introdução à História é um impresso que sintetiza os rudimentos do ofício do historiador para um suposto leitor que se inicia nos estudos da ciência da História em um curso de nível superior. Esse tipo de publicação começou a ganhar identidade com a introdução do saber histórico nas universidades, e os primeiros exemplares do gênero tiveram origem na Alemanha e na França, na segunda metade do século XIX: Grundriss der historik de Johan Gustav Droysen (1858), Lhrbuch de historischen Méthode und der Geschichtsphilosophie, de Ernest Bernheim [1895] e a Introduction aux études historiques, de Charles-Victor Langlois e Charles Seigbnobos (1898). Mas, porque tratar desses manuais?
Tais escolhas não são aleatórias. Elas estão relacionadas a tempos e espaços onde a história ganhou foros de curso de formação superior, onde se empregou, por exemplo, o título de licença docenti, onde se compilou, por fim, as regras necessárias ou reconhecimento do historiador como tal.
Estas regras foram empregadas na consolidação do campo e, sobretudo, para distinguir o historiador de formação e ofício do historiador autodidata e até do charlatão. Migraram pelo mundo, extrapolaram o ocidente. Até mesmo o Japão e a China fizeram uso, por exemplo, do livro de Bernheim no trabalho de iniciação aos estudos históricos. (cf. SATO, 2006, p. 158-159). Vejamos agora se os referidos autores abordam o tema do ensino de história e como relacionam o ensino de História à formação do historiador.
A Enciclopédia metodológica de Droysen
Johann Gustav Droysen (1808/1884) foi professor em Kiel, Jena e Berlin e assistiu às aulas de Filosofia da História de Hegel e propôs-se a superá-las com pressupostos kantianos. Sua importância nos estudos teórico-metodológicos de História se deve à tese-chave que ele estabeleceu para o historicismo – a idéia de compreensão – e ao fato de ter sistematizado os procedimentos metodológicos empregados pela hstoriografia da época, elaborando uma epistemologia para a História. (cf. Rüdiger, p. 22; Cremonezi, p. 2007, p. 19).
Droysen foi um crítico dos métodos de entender o processo histórico e de escrever a história com base na teologia, na filosofia da história e nas ciências naturais. Os dois primeiros, difundidos pelos iluministas do século XIX – Hegel –, por exemplo, eram excessivamente apriorísticos e o último, difundido por autores como Buckle, eram excessivamente empriricistas. O autor alemão propunha um método tripartite. O primeiro elemento era o objeto da história; o elemento material (a sistemática) – os restos que o mundo humano do passado nos legou. Ao historiador caberia compreender investigando, ou seja, conhecer, apreender, reconstruir as formas com as quais os homens modelam e modelaram a natureza em benefício do aperfeiçoamento humano, bem como as resultantes dessas forças (edifícios, cidades, estados, religiões, lei, direito, Constituição, família, Estado etc.).
O segundo componente do método eram para Droysen os procedimentos, ou seja, a metódica, que abrange a heurística (organização das fontes – restos, monumentos), a crítica (de autenticidade, veracidade, por exemplo) e a interpretação. O terceiro era a escrita propriamente dita. A assim chamada “tópica” prescreveria formas de exposição histórica – investigante, narrativa, didática e discursiva.
Nesta fala, não cabe fazer a crítica às concepções teórico-metodológicas da obra que veicula essa epistemologia histórica. O livro, de nome Histórica: lecciones sobre la Enciclopedia y metodologia de La historia reúne as lições produzidas em 1857/1858 e editadas em 1857/1858 e 1937 – quando foi acrescentado o capítulo referente à Tópica. Aqui apenas anunciamos o que e como o autor aborda o tema do ensino de história.
História e educação histórica
Na Histórica o ensino de história é abordado, pelo menos duas vezes. Já na introdução o autor adverte. A noção de história difundida nos colégios – correspondente ao que conhecemos no século XIX como ensino secundário – é bastante redutora: “os acontecimentos mais importantes de todos os tempos, especialmente, os acontecimentos políticos” (Droysen, 1983, p. 5). Não bastasse o pobre sentido veiculado nos colégios, o estudo da história na Universidade não fazia mais que aprofundar e especializar essa noção – por meio de disciplinas como História Antiga, História da Idade Média Alemã –, acompanhada de algumas técnicas de investigação e crítica de fontes.
No ensino superior, portanto, para Droysen, deve-se avançar para além do estudo do “acontecido”. Estudar a relevância, as relações com outros conhecimentos sobre o homem, a especificidade da tarefa da história e do historiador (limitações e competências), bem como a sua fundamentação teórico-metodológica. Droysen está preocupado, sobretudo, com a imagem que as outras ciências constroem da História.
Em síntese, neste primeiro momento, o ensino de história na escola é diagnosticado como uma prática empobrecida (acontecimentos mais importantes e de caráter político) que tende a contaminar parte dos estudos responsáveis pela formação do historiador.
Na última parte do capítulo, entretanto, o ensino de história transforma-se em protagonista. A Tópica, como já anunciamos, trata dos resultados da investigação histórica, ou seja, trata da exposição histórica. Para Droysen, a exposição histórica não é apenas elucidação e explicação – não é invenção do passado. Exposição histórica é também enriquecimento do presente. Há várias formas de expor e todas elas dependem da intenção do investigador, que para o autor são quatro: 1. apresentar a investigação realizada; 2. mostrar, passo a passo como as coisas realmente aconteceram; 3. converter o resultado da investigação (o que realmente aconteceu) em “convicção geral”; 4. basear-se na história para a tomada de decisões presentes e futuras. É justamente essa terceira intenção de uso que corresponde ao ensino de história. Trata-se da forma de apresentação “instrutiva” ou “didática”.[1]
Lo que fue no nos interesa porque fue sino porque, em cierto sentido, continúa siendo al seguir influyendo, porque se encuentra em todo el contexto de las cosas que llamamos el mundo histórico, es decir, ético, e cosmos ético. Constituye nuestra vida espiritual, nuestra cultura, el que conozcamos este gran contexto y nos sepamos em el; y solo podemos saberlo y tenernos em el presentes em el epítome de los pensamientos que son su contenido y su verdad. (Droysen, 1983, p. 340).
Droysen deposita no ensino de história uma função fundamental: a própria educação humana ou a direção do processo de humanização. Educação humana não significa existência ou apropriação de “grande variedade de habilidades, necessidades altamente desenvolvidas”, como os estudos astronômicos, matemáticos e artísticos de alguns povos da antiguidade. A esse conjunto de competências Droysen chama de cultura.
Educação é processo de humanização, de superação, por exemplo, do egoísmo e do exclusivismo, presente nos povos cultos da antiguidade. Educação é aquisição do “capital ético dos passados vivenciados”, é reconhecimento, por exemplo, de valores universais como o da liberdade humana, cunhados pelo espírito da Reforma. O poder didático da história reside, exatamente, nessa capacidade de dar a conhecer o processo de refinamento do gênero humano e de aquisição das instituições que refletem ideais de cada época.
Anunciamos acima que o ensino de história é uma das formas de exposição dos resultados da investigação histórica com a finalidade de converter esses resultados (o que realmente aconteceu) em “convicção geral”, ou seja, em valores universalmente válidos (embora não válidos para todo o sempre). Como então distribuir tais conteúdos na formação das crianças e jovens? Droysen recusa-se a oferecer detalhes. Mas aponta diretrizes curriculares. Para o primário e o ensino nos colégios, a História seria um estudo transversal. Para a universidade, uma especialidade – o estudo disciplinarizado da História. Do primário, porém, Droysen oferece assuntos e fontes. Aí, o ensino deveria contemplar matérias especulativas, físico-matemáticas e, obviamente, História. Se lembrarmos as críticas ao método histórico do início desta exposição, perceberemos que o autor sugere a inclusão de saberes fundados na especulação e na empiria. Dizendo de outro modo, saberes resultantes de condições apriori e aposteriori.
[...] por el árido esquema de nombres y fechas, que muy equivocadamente se considera em los exámenes como la suma del conocimiento y de la educación histórica, no vale la pena que la juventud se ocupe tanto tiempo de ella y menos aún por la serie casual de datos políticos externos, cuyo saber documenta la educación histórica. Uma parte mucho más grande y esencial de la enseñanza de tipo histórico es aquélla que considera la vieja literatura, y también la que se ocupa de la religión y hasta de la gramática y de las disciplinas matemáticas. O, dicho más corretamente: hemos hablado de los três grandes círculos científicos: del especulativo, del físico-matemático y del histórico. Toda buena enseñanza, aligual que uma buena comida, se basa em el hecho de que todos os muchos elementos nutritivos estén mezclados, y así la escuela cultiva estas três corrientes, cualquiera que sea la proporción em la que estén meclados, sea que la gramática y la matemática den preferência al elemento lógico, y em la ensñanza de las ciências naturales y de la física, a lo empírico-observable: tampoco em ela falta el elemento histórico y quizás precisamente estas cosas son compreensibles para la juventud, por lo pronto, solo desde su costado histórico. Ele captarlas como ciências separadas e independientes pertence a uma edad posterior y más madura y nada más absurdo que querer exigir de los jóvenes espíritus esfuerzos y pretender darles placeres que requieren como condición la pubertad espiritual de la que carecen. (Droysen, 1983, p. 380).
O importante é que o ensino de história atravesse todos esses saberes, apresentando os “grandes tipos essenciais” [2] colhidos no desenvolvimento humano e que podem muito bem ser encontrados, por exemplo, na Bíblia e na literatura de Homero:
(...) al menos los grandes tipos esenciales puede y tiene que darlos em la enseñanza. la lectura de la Biblio y, com ello, la historia judia y el comienzo de la Cristiana, ofrece uno de estos tipos esenciales. En la Biblia miesma se habla suficientemente de los griegos y romanos como para poder comunicar lo más esencial acerca de ellos. Y si a los niños de las aldeãs, tal como sucede com razón, se les cuenta algo de Homero y de las guerras persas, algunas historias de la antigua época romana, ellos entonces no solo habrán de conocer algo de estos grandes tipos, sino que para ellos habrá de resultar uma espécie de representación sincronística de La época anterior a Cristo y yna percepción del espacio histórico y de los estádios temporales. El que se les diga también lo más importante de la historia pátria, de Carlomagno, de las Cruzadas, de la Reforma, de la hstoria del nuevo Estado alemán desde los grandes príncipes electores: todo esto les proporciona uma experiência y percepción internas adecuada para sus condiciones simples. (Droysen, 1983, p. 381).
Por fim, qual a relação dessa idéia de ensino de história com a formação do historiador? Essa não é uma questão explícita do livro de Droysen. Mas, podemos concluir que se é fundamental ao historiador de ofício e formação acadêmica conhecer a relevância, as relações com outros conhecimentos sobre o homem, a especificidade da tarefa da história e do historiador (limitações e competências), a sua fundamentação teórico-metodológica – como anunciamos acima –, cabe ao historiador, em fim, conhecer a importância estratégica do ensino de história para a elaboração de uma consciência histórica. A História é elemento de humanização, mas também constrói identidades e orienta a intervenção no real, visando o aperfeiçoamento humano. Nas duas dimensões, presente e futuro, o ensino e a aprendizagem da história estão presente. Vejamos agora essa mesma relação no livro didático de Introdução à História mais famoso da França.
A Introdución aox études historiques de Langlois e Seignobos
Manuais de Introdução à História também foram produzidos na França, na segunda metade do século XIX. O mais conhecido deles foi a Introduction aux études historiques – a pedra angular da chamada Escola Metódica tão criticada pela primeira geração da Escola dos Annales.
A exemplo da Histórica de Droysen, o livro não era um tratado de Filosofia da História e nem um resumo da História universal, como poderia sugerir o título. Tratava-se de um ensaio sobre o método das ciências históricas. A Introduction nasceu das aulas ministradas na Sorbonne aos iniciantes do curso de História em 1896/1897. Seus autores, Charles Victor Langlois (1863/1929) e Charles Seignobos (1854/1945), instituíram, de forma didática, as etapas a serem percorridas pelos que desejavam produzir conhecimento histórico de forma científica. (cf. Freitas, 2007, p. 258-284).
A Introduction, da mesma forma, também contemplava discussões epistemológicas e orientações metódicas relativas à operação histórica: análise (críticas externa e interna) e síntese (agrupamento dos fatos e exposição, por exemplo). No entanto, diferentemente de Droysen, Langlois e Seignobos não estavam empenhados na divulgação de uma proposta exclusivamente compreensiva e engajada da História.
Para os autores franceses, a finalidade da História não era agradar, comover ou estabelecer normas para a intervenção no cotidiano. A história apenas dá a conhecer. É um instrumento de cultura intelectual. Uma arma contra a credulidade ingênua das pessoas, contra as analogias biológicas que explicam o processo de transformações humanas, enfim, é um instrumento de alteridade – diante das diferenças entre as sociedades (Langlois e Seignobos, 1992, p. 244 e 256).
Não obstante as diferenças, o ensino de história ocupa uma parte do manual. Ele compõe o apêndice intitulado “O ensino secundário da História na França”. Por que os autores abriram espaço para o tema?
A História metódica na educação dos franceses
Uma resposta hipotética seria: os autores tratam de ensino de história porque a metodização do ofício só se complementa com a extensão e o bom uso dos procedimentos científicos, no caso, a extensão a todos os profissionais de história e ao grande público consumidor dos resultados da investigação metódica. A segunda resposta também poderia ser: a episteme e a metodologia histórica são tão avançadas que devem ser transferidas ao ensino de história.
Na verdade, quem escreve sobre ensino de história é Charles Seignobos, que tentou sistematizar uma nova pedagogia histórica (teoria do ensino de história) em curso na Sorbonne. Mas, as diretrizes dessa pedagogia encontram-se no apêndice à Introduction. Quais são elas?
Em primeiro lugar, a crítica ao ensino de história nos liceus do seu tempo – a escola secundária francesa: o trabalho do professor era ler uma série de fatos (lição). O papel do aluno, escutar, escrever (tomar notas), e narrar o escutado (redação). A aprendizagem era mediada pela memorização e o exercício (ditado). E a avaliação reduzia-se à interrogação oral sobre o sumário (lido pelo professor) e à redação (anotada pelo aluno). Os livros didáticos constituíam-se da mesma matéria verbalizada pelo professor. Reuniam uma série de nomes próprios e datas, guerras, tratados, reformas e revoluções. (cf. Langlois e Seignobos, p. 263). O que os autores propunham, então?
Depois do diagnóstico, o prognóstico: os metódicos sugeriam uma renovação em termos de pedagogia e de técnica. Seria necessário discutir a “organização geral” (finalidades, utilidade), a forma de escolha e a ordem dos conteúdos. Seria fundamental também discutir os processos de ensino (atividades de alunos e professores, recursos materiais, entre outros). Assim, os autores propõem a extinção do caráter passivo do aluno. Sugerem a análise e a descrição de textos e gravuras, a elaboração de mapas quadros sincrônicos, cronológicos e comparativos entre fenômenos de diferentes sociedades, estratégias que introduzem o hábito de empregar termos precisos.
Por fim, o anúncio de uma nova finalidade para o ensino racional da história. A História ensinada é um instrumento de cultura social. Ela dá a conhecer os fenômenos sociais e leva à compreensão das suas modificações e da sua evolução: “Toutes ces acquisitions rendent l’élève plus apte à participer à la vie publique; l’histoire paraît ainsi l’enseignement indispensable dans une société démocratique”. (Langlois e Seignobos, p. 267). Observem este fragmento da tradução brasileira:
O papel da história na educação não é ainda suficientemente compreendido por todos os que a lecionam. Mas todos os que meditam a esse respeito são unânimes em encarar a história como um instrumento de cultura social. O estudo das sociedades do passado faz que os alunos entendam, com exemplos práticos, o que é uma sociedade, familiariza-os com os principais fenômenos sociais e com as diferentes espécies de usos e de instituições, cujo conhecimento, pela observação da realidade atual, é muito difícil e desaconselhado pela prática; mostra-lhes, pela comparação de usos diferentes, os caracteres desses usos, sua variedade e suas semelhanças – O estudo dos acontecimentos e das evoluções torna-lhes familiar a idéia da transformação contínua das coisas humanas, salvaguarda-os do medo injustificável das mutações sociais; retifica-lhes a noção de progresso. (Langlois e Seignobos, 1946, p. 231).
Expostos os significativos tópicos sobre o ensino de história, resta-nos tocar na questão principal deste texto: qual a relação entre ensino de história e formação do historiador? Para os metódicos aqui referenciados, se a história (concepções, funções e práticas investigativas) ganhava foros de ciência, o seu emprego e difusão no ensino secundário também deveriam renovar-se. A transformação, embora mais lenta e difícil no ambiente dos liceus, era uma tarefa a ser enfrentada pelos historiadores profissionais. Por isso, a pedagogia que os metódicos tentaram implantar – e que ganhou terreno a partir da reforma de 1902 – estava baseada na episteme da historiografia universitária, ou seja, no emprego do método do historiador, a crítica histórica, a crítica dos testemunhos.
As pertenças ideológicas (republicanas, nacionalistas, anticatólicas) também condicionaram a renovação do ensino em termos de métodos e conteúdos na França, é claro (as raízes clássicas, história política, narrativa, com ênfase na contemporaneidade etc.). A reflexão sobre as operações mentais da criança e do adolescente também foi uma preocupação francesa. Mas, o critério definidor dessas próprias representações, como também da natureza e da distribuição dos conteúdos e das formas de ministrá-los, foi extraído da episteme de historiador: dos passos do método histórico – análise (inclusa a crítica histórica, os processos de imaginação do acontecido) e síntese. Daí, as palavras de ordem para a tarefa de ensinar história – analisar, identificar, caracterizar, comparar, distinguir – coincidirem com as etapas do trabalho de escrita da história dos metódicos. (cf. Freitas, 2008).
Conclusão
Iniciei este texto guiado por uma provocação: que relações podem ser estabelecidas entre ensino de história e formação do historiador? A minha resposta baseou-se numa definição de historiador (construído na relação nós-outros), numa instância da formação – a disciplina Introdução aos Estudos Históricos. Fui buscar no século XIX, o século da História ou, pelo menos, o século da metodização do ofício em nível universitário. E o que encontramos? Nesta dimensão – propedêutica – o ensino de história é tema fundamental para a formação do historiador. Para Droysen, ensino e aprendizagem históricos justificam a existência do ofício – ensinar e aprender História é viabilizar o próprio processo de humanização. Para Langlois e Seignobos, ensinar História é concretizar as finalidades do saber erudito. A História é instrumento de educação social. Afasta os mitos/mentiras, difunde alteridade e ajuda a manter a democracia.
O que ocorreu no século XX, sobretudo com o recrudescimento da institucionalização da história nas Universidades foi um progressivo afastamento entre as matérias propedêuticas da formação historiadora e as discussões sobre o ensino de história escolar; ocorreu um afastamento entre os historiadores e os formuladores de políticas públicas para a disciplina História, como já foi anunciada por Jörn Rüsen, no caso da Alemanha. Vários são os indícios desse afastamento. Basta pensar na sobrevivência do currículo 3+1, das faculdades de Filosofia e nos departamentos de História contemporâneos; basta analisar o desprezo dos alunos – futuros historiadores – em relação a disciplinas como Didática, Métodos e Técnicas de Ensino, Psicologia da Aprendizagem, Estrutura e Funcionamento de Ensino entre outras; basta observar o sentimento de angústia dos professores lotados nos Departamentos de História diante das novas diretrizes curriculares que obrigam o emprego de 800 horas em atividades relativas ao futuro ambiente de trabalho do professor de história, a escola do ensino fundamental; em fim, basta observar os manuais de Introdução à História produzidos no Brasil ou aqui difundidos ao longo do século XX.
Julgamos ser necessário retomar a reflexão sobre a dimensão prática da história na formação do historiador. Afinal, fazemos história para quê? Deve haver e há um sentido mais abrangente, além da idéia de dar prazer ou transformar o mundo como afirmaram Marc Bloch e Jean Chesneaux.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O ensino de História e formação do historiador: a experiência dos manuais de Introdução à História. In: ANDRADE, João Maria Valença; STAMATTO, Maria Inês Sucupira. (Org.). História ensinada e a escrita da história. Natal: Editora da UFRN, 2009. pp. 83-90.

Referências
TAUNAY, Afonso de Escragnolle. Os princípios gerais da moderna crítica histórica. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, São Paulo, v. 16, p. 323-344, s.n. 1914.
­­­ISOLDI, Francisco. Preleções de introdução à história e crítica histórica no ano de 1932 na Faculdade Paulista de Letras e Filosofia. São Paulo: Piratininga, 1932.
CREMONEZI, André Roberto. O conceito de compreensão na Histórica de Johann Gustav Droysen. Santa Maria, 2005. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Santa Maria.
DROYSEN, Johann Gustav. Historica: lecciones sobre la Enciclopedia y metodologia de la historia. Barcelona: Alfa, 1983. [Aulas produzidas em 1857 e publicadas em 1936].
LANGLOIS, Charles Victor e SEIGNOBOS, Charles. Introduction aux études historiques. Paris: Kimé, 1992.
LÉVI-STRAUSS, Claude. In: L’identité: Seminaire dirigé por C. Levy-Strauss. Paris: Bernard Gasset, 1977.
RÜDIGER, Francisco Ricardo. Paradigmas do estudo da História: os modelos de compreensão da ciência histórica no pensamento contemporâneo. Porto Alegre: IEL/IGEL, 1991.
SATO, Masayuki. Historiografia cognitiva e historiografia normativa. In: MALERBA, Jurandir. A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. pp. 156-174.
SILVA, Rogério Forastieri da Silva. História da Historiografia. Bauru: Edusc, 2001.

Notas
[1] As demais formas são, respectivamente: investigativa, narrativa e discursiva.
[2] Não confundir tipos como “modelos individuais”. Droysen não prega a imitação de modelos (Césares, Fredericos) nem regras seguras para aplicação futura. Ele defende a apreensão de traços superiores, éticos que fundamentam os grandes pontos de vista, e as grandes motivações.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Livro didático de história: definições, representações e prescrições de uso

Obras complementares do PNLD 2010. Foto: itamarfo (2010).
O que é um livro didático de História, ou melhor, o que vem a ser um livro didático hoje? Livro é “um conjunto de folhas impressas e reunidas em volume encadernado ou brochado”. Já o didático significa “que é próprio ou relativo ao ensino, à instrução; que tem por fim instruir”. (Larousse, 1992).
Por essa definição, todo conjunto de folhas impressas e reunidas em volume encadernado ou brochado posto em uso nas tarefas de ensino e de aprendizagem poderia ser chamado de didático. Assim, seriam livros didáticos, por exemplo, o impresso regional distribuído pelo PNLD 2007, História do Mato Grosso do Sul, de Zélia de Souza, o Atlas Histórico escolar, do MEC, As Minas de Prata, de José de Alencar, 50 textos de História do Brasil, organizado por Dea Fenelon, o Dicionário do Brasil Colonial, organizado por Ronaldo Vainfas, as “Histórias” da Mônica, de Maurício de Souza, e O engenho colonial, de Luiz Teixeira Júnior. Essas obras, de alguma forma, são utilizadas nos estudos de História colonial do ensino fundamental.
Tudo resolvido? Claro que não! O assunto é controverso entre os professores. Raramente se aceitam os gêneros atlas, romance, livros de fontes, dicionário, história em quadrinhos como livros didáticos. A obra O engenho colonial, por sua vez, é considerada leitura complementar, leitura de aprofundamento, isto é, livro paradidático, como já indica o catálogo da editora de origem.
Vemos, então, que a definição de livro didático baseada nos termos dos dicionários da língua portuguesa são insuficientes para resolver nosso problema inicial. Mas, o que dizem os pesquisadores a respeito?
Neste penúltimo capítulo, estudaremos as definições e prescrições de uso do livro didático de história, colhidas na literatura corrente sobre o tema, bem como nos impressos pedagógicos destinados à formação inicial e continuada de licenciados em História e em Pedagogia ao longo do século XX, no Brasil.

O que é um livro didático?
Os especialistas na temática divergem bastante sobre a definição de livro didático[1]. Alguns admitem todos os gêneros aqui citados. Outros, somente os impressos que transpõem, didaticamente, matéria historiográfica. Outros, ainda, hierarquizaram as obras, colocando, em primeiro lugar, os títulos de leitura seqüencial, originalmente preparados para o uso dos alunos, e, em seguida, os livros de leitura tópica, utilizados com finalidades didáticas, tais como atlas, dicionários e enciclopédias.
As razões para tantas diferenças estão nas idéias professadas sobre a educação escolar e também na ênfase colocada em um ou outro critério de classificação, a saber: datas de origem – dos livros, da expansão dos sistemas públicos de escolarização –, o suporte, natureza e forma de organização dos conteúdos, finalidade ou destinatário, e os usos do livro didático. Paradoxalmente, é a partir dessas diferenças que podemos construir uma definição operacional do livro didático, definição esta que se baseia nos conceitos de texto, impresso e leitura.[2]
Em primeiro lugar, o livro didático é reconhecível porque materializa a disciplina escolar. Embora alguns especialistas afirmem que o livro didático existe desde a invenção da imprensa ou ainda que teve o seu nascedouro nos séculos XVII ou XVIII,[3] o artefato está intimamente ligado ao processo de disciplinarização dos saberes escolares. No caso brasileiro, há livros didáticos de História desde que a disciplina História foi constituída nos ensinos secundários e elementar, ou seja, desde o início do século XIX.
Mas como o livro pode materializar uma disciplina escolar? Ora, o livro é o suporte privilegiado da disciplina. Ele veicula os seus principais constituintes: os conteúdos, ou seja, o núcleo sobre o qual ela se constitui, a natureza temática e as limitações com as demais disciplinas. O livro didático também veicula as finalidades – as prescrições que dão sentido à existência dos conteúdos no conjunto das ações da escola. Por fim, os exercícios, isto é, o conjunto de atividades destinadas aos alunos e aos professores, responsável pela “fixação” e reprodução da disciplina escolar, também estão presentes no livro didático.
Como segunda característica, podemos afirmar que o livro didático é um material impresso, isto é, um objeto resultante do processo de colocação da tinta no papel, composto de tipos, vinhetas, imagens. Conhecemos livros didáticos de espuma, borracha sintética, tecidos e até de madeira, destinados aos alunos da educação infantil. O papel, no entanto, é o suporte característico do livro didático.
E o que dizer dos livros em suporte eletrônico, na internet ou nos CDRom? O livro difere fundamentalmente do texto eletrônico. Ele é escrito de forma linear e seqüencial. É composto por autores e editores, possui unidade temática, é finito e o relacionamento entre as suas unidades é mediado por sumário e índices (ao contrário dos hipertextos)[4]. Além disso, o impresso é uma tecnologia bastante prática, tanto para o fabricante, quanto para o vendedor e o leitor. O suporte papel torna o livro portável e manuseável, consultável em ambientes, situações e formas as mais diversas, independentemente de qualquer outra tecnologia. Para que isso ocorra, basta que se garanta, evidentemente, a sua conservação e um mínimo de luminosidade para o leitor.
A última característica significativa do livro didático é o fato de ele ser planejado e organizado para uso em situação didática; para ser lido – no seu sentido mais abrangente, para produzir sentido. Como a palavra didática, em Educação, sugere muitos sentidos, as divergências entre os pesquisadores se ampliam. Ela pode ser uma atividade com finalidade compreensiva, controladora ou emancipadora, para empregar uma tipologia sociológica. Ela pode ser uma prática centrada na autoridade do professor ou na interação aluno/saber sistematizado/experiência social, como tipificam as Psicologias. A opção por um desses sentidos orienta a função/ destinação do livro didático.
Apesar de tais variações, o “didático” do livro didático refere-se, predominantemente, às práticas no ambiente da escola e na residência dos seus usuários. Se assim raciocinarmos, teremos, no mínimo, dois destinatários para o livro didático: o aluno e o professor. Pensado como obra destinada ao aluno e ao professor, o artefato ganha, no mínimo, seis funções: reproduzir ideologia; difundir o currículo oficial; condensar princípios e fatos das ciências de referência; guiar o processo de ensino; guiar o processo de aprendizagem; possibilitar formação continuada.[5]
Com esses comentários, finalmente, podemos chegar a uma definição operacional para livro didático que muito nos auxiliará no exame das prescrições de uso contidas nos manuais de formação de professor. Livro didático é, portanto, um artefato impresso em papel, que veicula imagens e textos em formato linear e seqüencial, planejado, organizado e produzido especificamente para uso em situações didáticas, envolvendo predominantemente alunos e professores, e que tem a função de transmitir saberes circunscritos a uma disciplina escolar. Essa é a imagem que faço quando penso em livro didático.

Sobre a imagem do livro didático
Das tecnologias educacionais difundidas no século XX, o livro didático é a mais presente no cotidiano de professores e de alunos. Talvez, por isso, tenha atraído tantos defensores e inimigos, penso que na mesma proporção.
Os professores da escolarização básica são os primeiros a elencarem os seus vícios e virtudes. O maior vício de um livro didático é o de não utilizar, respeitar, aproximar-se, atingir a realidade do aluno (uso os mesmos verbos pronunciados pelos professores em Sergipe). Professores estranham a distância entre as imagens acéticas dos livros didáticos e a dureza da realidade que circunda a escola. Outros problemas apontados são as formas longas ou resumidas dos textos, o conteúdo incompleto e os freqüentes erros factuais.
Entre as virtudes do livro didático, obviamente, desponta o fato de ele respeitar e até estimular o trabalho com a realidade do aluno. Mas, são também virtudes o emprego dos instrumentos imagéticos e gráficos que facilitam e estimulam a aprendizagem,[6] a linguagem acessível e a informação historiográfica atualizada e didatizada.
Evidentemente, cada professor faz a crítica a partir de uma imagem de livro ideal que satisfaça as suas necessidades cotidianas. Sendo assim, cada professor tem um modelo de livro na cabeça. Esse livro, dependendo da situação, pode ser considerado a solução para educação escolar ou a desgraça dos impressos didáticos disponíveis no mercado. Foi assim no século XX e deve assim continuar ao longo do século XXI.
No mundo da pesquisa acadêmica, entretanto, as mudanças na imagem do livro didático – mais céticas ou mais compreensivas – podem ser delineadas com maior clareza. Para Jean Hebrard[7], por exemplo, o livro didático gozou de grande prestígio entre o final do século XIX e a década de 1960. Nesse período, vigorou o modelo pedagógico das Escolas Normais, que articulava professores modelos (de escolas de aplicação), formadores (diretores e professores das Escolas Normais) e diretores de coleções e de livros didáticos (professores de Escolas Normais ou próximos a estas). O livro didático era instrumento privilegiado nas ações de ensino e de aprendizagem.
Entre as décadas de 1970 e 1990, ao contrário, quando as “múltiplas formas do construtivismo” professadas nos Departamentos de Educação das Universidades começaram a fazer sucesso – modelo da autonomia do aluno e do professor, o modelo, enfim, da democracia – o livro didático caiu em descrédito. Variantes do construtivismo negam a possibilidade de a construção do conhecimento, por parte do aluno, “basear-se num livro escolar na sua forma tradicional”.
O ceticismo também proveio das mudanças operadas na ciência de referência. No caso da História, a nova tendência historiográfica impressa pela Escola dos Annales – trabalhar com problemas, de forma interdisciplinar, ampliando a noção de fonte histórica – foi considerada como modelo também para o ensino de história. Daí, a crítica severa aos livros didáticos, em sua maioria, baseados no padrão da historiografia anterior – a história narrativa – da Escola Metódica.
No Brasil, em tempos de República, também podemos identificar uma época de ouro dos livros didáticos de História. Entre 1910 e 1960, aproximadamente, depositou-se no artefato uma grande responsabilidade no sucesso e na qualidade dos ensinos primário e secundário. As iniciativas do Estado em normatizar a produção, circulação e usos com Sampaio Dória (1917) em São Paulo, Gustavo Capanema – CNLD (Comissão Nacional do Livro Didático-1938) e Anísio Teixeira - INEP (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos - 1952) no Distrito Federal, da Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático – COLTED (Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático – 1966), são indícios de que o livro didático era também um componente estratégico para a renovação das práticas escolares.
As causas desse prestígio são várias e incluem a expansão do ensino primário no início do século; a padronização do ensino secundário, ocorrida a partir da década de 1930; a sucessiva hegemonia dos modelos pedagógicos tradicional e escolanovista nas políticas públicas de então; e a articulação entre autores, editoras e professores (de escolas normais, colégios secundários modelos, Institutos de Educação, Faculdades de Filosofia e de Educação).
O descrédito, por outro lado, pode ser datado entre as décadas de 1970 e 1980. Para Kazumi Munakata[8] (1998), a suspeição em torno do livro didático está diretamente relacionada à reação dos intelectuais à ditadura militar. Nesse período, vigorou uma pedagogia crítica que considerava os livros didáticos como muletas indesejáveis. Também nesse período, educadores de História e Geografia protestaram contra a substituição das referidas disciplinas pela matéria Estudos Sociais.
Houve uma verdadeira “caça às bruxas”, ou seja, os livros de Estudos Sociais, por exemplo, foram alvo de críticas severas, por serem veiculadores da ideologia da classe dominante e/ou do regime militar. O modelo para essa crítica provinha de obras cujos títulos, por si sós, revelam o espírito da época: Mentiras que parecem verdades,[9] de Umberto Eco e Marisa Bonazzi (1980) e A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação, de Marc Ferro (1983).
Por outro lado, livros didáticos de história também foram (e são alvo) da estigmatização da pedagogia, freqüente entre muitos profissionais formados em História. As obras não constam nos inventários da História da Historiografia, indicando que são desconsiderados como escrita da História. Como tema de discussão no campo, o livro didático é peça de menor valor. Claro que a maioria não assume esse estigma, como vemos nesse depoimento sincero da historiadora Claudia Wasserman:
Ao ser convidada para participar do simpósio de Teoria e metodologia, senti um grande orgulho de pertencer a essa seleta elite que estuda não apenas a História, mas também o desenvolvimento do processo de produção do conhecimento, ou melhor, que discute a própria ciência. Porém, logo que me foi designada a mesa de ensino, me senti frustrada (temos a tendência a menosprezar os temas da educação). Com tantos temas importantes, pulsantes, novos e polêmicos (biografias, novas tendências, História no fim do milênio), eu teria que me contentar com a discussão do livro-didático, lamentar as mazelas da educação brasileira, etc. (Waserman, 2000, p. 249, grifos da autora).[10]
Se os historiadores fazem críticas veladas, a grande imprensa, ao contrário, não economiza palavras ao apontar, com argumentos pouco consistentes, as mazelas do livro didático de História no Brasil. “Lavagem cerebral”, por exemplo, foi o título do editorial de O Globo (19, set. 2007) para denunciar o “pedigree ideológico” do Governo Lula, veiculado em um livro didático distribuído pelo Estado. Segundo o editorialista, o governo mantinha em circulação a Nova História crítica de Mário Schmidt, elaborada “com um único objetivo: enaltecer o socialismo e seus ícones e qualificar o capitalismo com os piores adjetivos”. Mal sabia o editor que o livro fora aprovado no governo FHC (Fernando Henrique Cardoso) e excluído por inadequações pedagógicas e historiográficas pelos avaliadores do PNLD, durante o próprio Governo Lula.
Apesar do fim do regime militar e do interesse das editoras em seguir o “politicamente correto” impresso na legislação brasileira, de orientar seus livros pelas tendências historiográficas mais recentes e propostas curriculares dominantes, apesar também de o MEC e as universidades públicas terem aperfeiçoado o sistema de avaliação, parte considerável da grande imprensa e um contingente muito expressivo de professores mantém uma hiper-desconfiança permanente em relação ao objeto livro didático. O livro didático de história é mal feito, emburrece e aliena (seja em benefício da direita, seja em benefício da esquerda). Enfim, a melhor coisa que professores conscientes e alunos ingênuos devem fazer diante de um livro didático de História é não lê-lo!

Ler ou não ler? Eis a questão!
Ler é produzir sentido a partir da experiência do leitor. É praticar leitura. É usar, empregar os textos. Essa produção de sentido ocorre sempre numa tensão entre a vontade disciplinarizadora do autor e do editor e a atitude transgressora do leitor. Em outras palavras, o autor e o editor querem que o leitor use o livro de determinada forma (ordem, modo), compreendam, assimilem e corroborem determinada tese, enquanto o leitor tem a liberdade de fazer o que quiser com os textos impressos que lhe são impostos, afirma Roger Chartier[11] (1990 e 2000).
A maioria dos profissionais de História e de Pedagogia, entretanto, acredita que os impressos didáticos são da responsabilidade única e exclusiva do autor, e ainda, que esse autor tem o poder de inculcar o que quiser na cabeça do leitor, bastando, para isso, capricho na sintaxe do texto e no layout do livro. A leitura é concebida por muitos como uma prática de mão única, e o leitor como sujeito passivo nesse processo. Isso explica, em parte, a sugestão fornecida por um crítico das iniciativas do Estado Brasileiro em termos de distribuição gratuita de livros didáticos de História: “a melhor coisa que professores conscientes devem fazer diante de um livro didático de História distribuído pelo MEC é não lê-lo!”.
Ao contrário do colega, minha posição é de que os livros devem ser lidos. Devem ser usados, sim. Mas, como fazê-lo? Ora, não há que prescrever o uso aqui (evidentemente, não por neutralidade política). O uso é de responsabilidade do professor. O uso explícito – como portar uma coleção de casa para a escola e vice-versa, exibindo os artefatos aos outros sujeitos, como uma enciclopédia do saber histórico – já é sinal de positividade. O uso explícito, como ornamento ou símbolo de poder – como se fazia com os livros não didáticos na colônia – pode parecer futilidade, mas denuncia que o Estado está presente na comunidade e que as escolas públicas brasileiras caminham para a universalização de um direito: o ensino de qualidade. E esse fato é uma conquista recente, dos professores inclusive.
Sobre as formas de leitura ou ainda os frutos da leitura que os professores fazem dos conteúdos dos livros didáticos, a pesquisa brasileira apenas se inicia. E mesmo no seu início, a própria pesquisa sobre a apropriação[12] dos conteúdos é produzida de forma a comprovar, ora a vitória dos autores/editores, ora dos leitores/ professores. Em São Paulo, por exemplo, há professores que não se dobram aos protocolos de leitura[13] do autor, do editor, ou dos avaliadores dos livros didáticos no Brasil. Não usam os livros integralmente, preferem consultá-lo para introduzir ou complementar suas aulas, empregam somente os exercícios ou as imagens.
Em Sergipe, há casos em que o professor segue à risca a ordem das unidades do livro didático. Seja por estar no início da carreira, seja por não ter tempo para planejar suas aulas, o livro didático é a solução. Ainda no início da carreira, o mestre executa todo o programa prescrito pelo livro, desprezando, apenas, os exercícios e o manual do professor. Prefere ele mesmo elaborá-los, pois assim garante a adequação do livro ao projeto pedagógico da escola e às singularidades cognitivas das crianças, bem como a possibilidade de enfatizar os textos e as questões que considera fundamentais para a turma. Para o mais experiente, que “pegou” 12 turmas de séries diferentes, a solução para cumprir o programa é uma só: seguir os capítulos do didático. Enquanto isso, a sala de vídeos, a biblioteca e o laboratório de informática da escola permanecem fechados por falta de usuários. Mas, será que sempre foi assim?
Ao longo do século XX, vários profissionais formadores do magistério preocuparam-se em prescrever os usos do livro didático de História. Alguns foram críticos em relação a sua importância. Era possível ministrar uma aula e até um curso sem a presença do manual. Mas, nenhum dos autores de manuais pedagógicos consultados (didáticas, metodologias) abriu guerra contra os livros didáticos. As obras tinham sempre uma função que variava conforme a posição política do autor, a tendência pedagógica professada.
Na Didática da Escola Nova (1935), os livros de texto[14] eram estimuladores, além de oferecerem fontes, problemas e narrativas para a experimentação das crianças. Nos tempos dos Estudos Sociais (décadas de 1970 e 1980), os didáticos serviam para veicular valores, atitudes e as conquistas do mundo moderno.
No retorno da História às séries iniciais, às funções elencadas foram acrescentadas as denúncias de fornecer lucro, transmitir mitos historiográficos, dar suporte aos conhecimentos escolares, currículos educacionais e métodos pedagógicos.
O local de uso variou pouco. Predominaram as orientações para o emprego em espaços público ou privados, ou seja, em sala de aula ou na residência de alunos e professores. O “como usar”, entretanto, foi alvo de alternativas diversas.
Para aqueles que têm o livro como “recurso” ou “auxiliar” indispensável ao ofício do professor, a orientação majoritária foi ler, ou melhor, fazer com que os alunos lessem-no de forma silenciosa ou oralmente em sala de aula.
A abundância ou escassez do livro do aluno determinou modalidades. Se todos têm livros, lemos coletivamente e silenciosamente; sentados, com os “pés no chão, coluna ereta, livro meio inclinado para a direita”; em pé, coluna ereta, voz empostada. Se a escola tem poucos livros, os exemplares são emprestados a determinado grupo que lê e o restante se envolve com outro tipo de atividade.
Para que ler? Para conhecer o livro em sua integralidade (capa, sumário, índices etc.); responder os exercícios; elaborar resumos e esquemas; preparar a explicação do texto; preparar-se para a exposição e o debate; conhecer conceitos históricos; observar como tais conceitos são trabalhados na série; tomar ciência da forma de trabalhar com tais conceitos; conhecer o sentido das palavras; ampliar vocabulário; extrair as idéias centrais; relacionar as idéias centrais; para replicar ou criar atividades que complementem e/ou enriqueçam os conteúdos substantivos do livro.
Por fim, para aqueles que não veem o livro como peça imprescindível, também há prescrições: se o livro contiver erros factuais ou lógicos, estimule os alunos a questionarem e apontar suas contradições. Se a organização das unidades provoca monotonia, trabalhe os mesmos temas com outras linguagens e gêneros (imagens, notícias de jornal). Se não aborda conceitos considerados fundamentais em História, crie atividades para desenvolvê-los com os alunos. Em síntese, ainda que ruins, os livros didáticos podem possibilitar uma boa aula ou um curso de qualidade. Aí, mais uma vez, o espaço é franqueado ao professor – o responsável pela organização das experiências didáticas.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Livro didático de história: definições, representações e prescrições de uso. In: OLIVEIRA, Margarida Dias de; OLIVEIRA, Almir Flélix Bueno de. Livros didáticos de História: escolhas e utilizações. Natal: Editora da UFRN, 2009. pp. 11-19.

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Resumo
Livro didático é um artefato impresso em papel que veicula imagens e textos em formato linear e seqüencial, planejado, organizado e produzido especificamente para uso em situações didáticas, envolvendo predominantemente alunos e professores com a função de transmitir saberes circunscritos a uma disciplina escolar. O livro didático perfeito existe apenas na cabeça do professor. No concreto, os impressos didáticos são plenos de vícios e virtudes, qualificados pelo maior ou menor respeito e/ou pelo maior ou menor estímulo proporcionado ao trabalho com a realidade do aluno. Apesar dessa característica, o livro didático é alvo de críticas severas, sobretudo de historiadores que não lêem livros didáticos e desconhecem a literatura sobre o tema. O artefato, vez por outra, é criticado pela grande imprensa interessada em produzir algo novo na política, com argumentação pouco consistente. Sobre os usos do livro didático, podemos afirmar que os artefatos são produzidos por autores e editores que aí expressam suas vontades. Mas, na leitura dessa tecnologia educacional, as necessidades e vontades do professor e do aluno são componentes fundamentais para reflexão sobre os usos e as repercussões dos usos dos livros didáticos. Em outras palavras, é possível conduzir momentos didáticos de excelência, mesmo com livros didáticos equivocados em termos historiográficos, pedagógicos, lingüísticos ou gráficos. Quem dá a última palavra é sempre o professor e o aluno.

Notas
[1] Em 1658, João Amós Comenius publicou Orbis Sensualium Pectus (O mundo sensível ilustrado), considerado o precursor do livro didático moderno. Tratava-se de um livro de imagens, destinado ao ensino do latim e de línguas maternas. Entre os seus objetivos, Comenius destacava: I. que ele seja entregue aos meninos em suas mãos, para que se encantem, com o espetáculo das figuras e as tornem, para si, como muito familiares também em casa, antes que sejam mandados para a escola. II. Então, logo depois, sobretudo já na escola, que ele seja examinado, qualquer que seja o assunto a que se dedique, a fim de que os meninos nada vejam, do que não sabem dar nome e nada denominem do que não sabem expor. III. que ele mostre realmente como as coisas são denominadas, não tanto na ilustração, mas em si mesmas, por exemplo, os membros do corpo, as vestes, os livros, as casas, os utensílios etc. (Commenius, 1659, apud. Schelbauer, 2008).
[2] Texto é fruto do trabalho de escritura sob a responsabilidade do autor.
Impresso é objeto constituído por papel e tinta, manipulado pelo editor, que serve de suporte ao texto.
Leitura é a prática de produção de sentido a partir do texto e do impresso que lhe dá suporte. A compreensão do escrito resulta, portanto, da tensão entre as vontades e estratégias do autor, do editor e do leitor. (cf. Chartier, 1990, pp. 121- 139).
[3] Para Maria Inêz Sucupira Stamatto, pesquisadora do ensino de História e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é possível que o Brasil tenha importado e utilizado, ainda no século XVIII, o “sistema catecismo”: o livro compunha-se de um texto seguido por exames - questões cujas respostas encontravam-se literalmente no texto anterior (Stamatto, 2008, p. 138).
[4] Hipertexto “ é a forma de apresentação de informações em um monitor de vídeo, na qual algum elemento (palavra, expressão ou imagem) é destacado e, quando acionado (ger. mediante um clique de mouse), provoca a exibição de um novo hipertexto com informações relativas ao referido elemento”. (Houaiss, 2007).
[5] Em geral, não divergimos quanto ao sentido de continuado: significa não dividido, não interrompido, prolongado e até repetido. As idéias de formação e de educação, entretanto, causam as maiores polêmicas: o que entendemos como educação, seria transmissão ou inculcação? E por formação, o que entendemos? Formação é criação ou moldagem? Para além da polêmica, parece óbvio que a formação continuada ocorre após uma outra formação, denominada de formação inicial. É o conjunto de práticas ligadas ao ofício de professor, vivenciadas imediatamente após o término do seu curso de licenciatura. Essa prática formativa foi institucionalizada há poucas décadas. No Brasil, ela é, inclusive, prescrita por alguns importantes dispositivos legais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o Plano Nacional de Educação. A formação continuada é um dever do Estado, uma necessidade do professor e um direito do aluno.
[6] Livros didáticos facilitam e estimulam a aprendizagem, era o que afirmava Jonathas Serrano, ainda no início do século passado: o aluno deve gostar do livro adotado em aula. Deve entendê-lo perfeitamente. O compêndio é feito para facilitar o estudo, e não para torná-lo mais complicado e enfadonho. O melhor juiz do compêndio é o próprio estudante. Livro antipático e detestado é, por força, livro mal feito. (Serrano, 1935, pp. 73-74).
[7] Jean Herbrard. Inspetorgeral do Ministério da Educação da França e pesquisador da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Publicou Discursos sobre a leitura - 1880/1980 (1995).
[8] Kazumi Munakata. Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pesquisador de história das disciplinas e do livro didático. Publicou “Por que Descartes criticou os estudos que realizou no Colégio de la Flèche, mesmo admitindo que era uma das mais célebres escolas da Europa” (2003).
[9] Mentiras que parecem verdades é uma espécie de antologia de preconceitos, mistificações, “delirante reacionarismo arcaico” e “frequente tendência fascista” recolhidos de livros didáticos italianos. O que ali importa não é tanto a análise, confinada a poucas linhas de apresentação de cada capítulo, mas, como afirma Eco na “Introdução”, a denúncia de conteúdos perpetrados por autores que, “para satisfazer a maioria, para não causar discórdias, para evitar suscetibilidades, para agradar a todos”, não ultrapassam o “nível do óbvio ululante, do corriqueiro, do acrítico, da imbecilidade respeitável”. (p. 18). A surpreendente conclusão de Eco  é bastante conhecida: A aspiração máxima seria que Mentiras que parecem verdades se tornasse o único livro de texto adotado nas escolas.” (p. 18).
[10] Segue o restante do texto, onde a autora anuncia a relevância dos estudos sobre o livro didático de história: “Mas, logo que comecei a refletir sobre o tema proposto, percebi o privilégio único de debater sobre o verdadeiro ofício do historiador. Ou seja, pensar nos conteúdos teóricometodológicos do nosso cotidiano acadêmicouniversitário é muito menos desafiador do que pensar nesses conteúdos no âmbito da escola e dos instrumentos envolvidos no processo ensinoaprendizagem”. (Waserman, 2000, p. 249).
[11] Roger Chartier. Diretor de Investigações na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris e pesquisador de história da leitura, do livro e das edições. Publicou História cultural: entre práticas e representações (1990).
[12] Em seu sentido etimológico, apropriar-se é estabelecer a propriedade sobre algo. Mas, existe a apropriação no sentido da hermenêutica, que significa aquilo que os indivíduos fazem com o que recebem. O conceito de apropriação pode mesclar o controle e a invenção, pode articular a imposição de um sentido e a produção de sentidos novos. (Chartier, 2000, pp. 90-91).
[13] Protocolos de leitura são o conjunto de normas reguladoras sugeridas ao leitor do livro didático por parte do autor (modos de desenvolver uma atividade com os alunos, indicações de leituras complementares) do editor (sumário, títulos, glossário) ou do avaliador do livro didático (complementar conteúdos, criticar abordagens e atentar para os exageros, por exemplo).
[14] Os livros de texto não devem ser obras de ensino, e sim livros de trabalho. Deverão estimular a criança para que realize seu trabalho escolar, indicarão as fontes que se podem consultar, apresentarão problemas e dificuldades adaptadas à experiência e capacidade dos alunos e farão narrações vivas, interessantes e animadas, tomadas com freqüência das fontes históricas. Um bom livro de trabalho pode, pelo menos até certo ponto, substituir uma coleção de fontes. (Aguayo, 1935, p. 242).