quarta-feira, 21 de outubro de 2009

História em quadrinhos e narrativa histórica

História em Quadrinhos: Independência do Brasil
No Dicionário de Houaiss (2008), os quadrinhos são definidos como desenho em seqüência para fins caricaturais ou humorísticos. Entre os especialistas, a locução história em quadrinhos, por sua vez, é definida como meio de comunicação de massas em formato narrativo, constituído por elementos verbais e icônicos.
Majoritariamente, portanto, não importa a pluralidade de definições (forma, método, meio de expressão) e de funções (humorística, didática etc.), a história em quadrinhos é compreendida como uma mensagem predominantemente narrativa. Em outras palavras, HQ é uma mensagem cujo tempo é o elemento fundamental – o tempo e suas dimensões principais: ordem/seqüência (antes/durante/depois), ritmo, simultaneidade e duração.
Se a HQ é um gênero que leva em conta o tempo, já temos uma vinculação estreita com o ensino de história, você pode concluir. Mas, a narrativa de HQ possui suas particularidades. Ela não se constitui na seqüência mecânica de imagens cercadas por quadros, apenas – como os fotogramas das películas de cinema, que ganham sentido com o movimento rápido dos quadros frente ao espectador.
Nos quadrinhos, o sentido da história é construído por antecipações e complementos das ações efetuados na mente do leitor. Nesse sentido, há uma série de recursos que facilita a percepção. Assim, para melhor aproveitar as vantagens e as funções dessa forma de comunicação, é necessário um conhecimento elementar sobre a estrutura dos quadrinhos. Acompanhemos a síntese da tipologia utilizada por José Luis Diéguez (1988).

A natureza da linguagem dos quadrinhos
Em primeiro lugar, os gibis são montados sobre quadrinhos, tecnicamente chamados de vinhetas. A vinheta é a menor unidade de significação espaço-temporal. Mas, observe, nem sempre a vinheta é um quadrilátero. Ela pode ganhar a forma quadrangular, retangular, triangular, circular, entre outras. Tal forma, por sua vez, pode ser desenhada com linha contínua ou descontínua. As imagens e palavras contidas em uma vinheta de linhas pontilhadas, por exemplo, expressa uma situação desejada ou a descrição de um sonho.
A significação da vinheta (ou o caráter de produzir sentido) é viabilizada pelo emprego de imagens e palavras para transmitir informações. As imagens apresentam (dizem quem são), principalmente, os personagens, isto é, constróem o conteúdo substantivo. Os personagens, a depender do efeito que se queira produzir no leitor, podem ser realistas, caricaturais, figuras de animais humanizados e até ilustrações não figurativas. Esses diferentes níveis de iconicidade ajudam a expressar maior ou menor realismo, maior ou menor solenidade, convencionalismo e oficialidade para as experiências históricas narradas em quadrinhos.
A imagem dos personagens, entretanto, não basta para contar uma história. É necessário também escolher o ângulo (visão horizontal – ao centro, de cima, de baixo, e vertical – de cima e de baixo) e o plano (geral, inteiro, americano, primeiro plano e plano detalhe) por onde o leitor deverá observar. O plano detalhe ou o close – o quadrinho emoldurando a imagem dos olhos do personagem, demonstra intimidade do personagem, por exemplo, com o leitor e vice-versa. O ângulo horizontal visto de baixo hiperdimensiona o personagem retratado e pode expressar a visão que a criança tem do adulto à sua frente – muito alto, grande, enorme!
Além do plano e da angulação, a história em quadrinhos emprega alguns sinais para ampliar a expressividade dos personagens e melhor qualificar a sua personalidade ou a sua ação. Várias linhas contínuas impressas “no ar”, deixadas como rastro ou a multiplicação de pernas em um personagem indicam movimento rápido ou fuga; pequenas gotas dágua próximas à face podem expressar calor, esforço ou cansaço. Outras marcas podem transmitir gestos e atitudes, enriquecendo a adjetivação da vinheta, como por exemplo: cantos da boca voltados para baixo, combinados com sobrancelhas em forma de aspas simples para expressar tristeza e a posição inversa (de sobrancelhas e boca) para indicar feição hostil e maliciosa.
Por fim, o conteúdo verbal. Um história em quadrinhos pode até prescindir da palavra. Na maioria dos casos, entretanto, o quadrinista integra conteúdo icônico e conteúdo verbal, fazendo uso de três tipos de escrito: 1. o texto de transferência que, geralmente, transmite a voz do narrador, contextualizando a ação, anunciando a mudança temporal ou espacial da cena, encerrado em retângulos; 2. a conversação entre os personagens (texto dialogal), que vem dentro de balões; 3. onomatopéias ou palavras que reproduzem sons diversos, por exemplo: vruuuuum (som de carro), tchibuumm (som de mergulho na picina), e zzzzzzzz (o zunido da abelha).

O lugar da HQ no ensino de história
A relação história em quadrinhos e narrativa sobre história do Brasil, obviamente, não é recente. Data do final dos anos 1930, por exemplo, a iniciativa de narrar a Vida de Lampião, ainda com sabor de nota jornalística. Nos anos 1950, tivemos a iniciativa de marcar as efemérides brasileiras nas páginas da revista Sesinho que, curiosamente, já aborda os personagens Frei Caneca e Zumbi dos Palmares. Esta revista reforça o direcionamento da história em quadrinhos para o público infantil, ocorrida em meados dos anos 1930 com a introdução do modelo norte-americano de quadrinhos no Brasil. Nos anos 1960, idêntica intenção memorialista e até grandiloqüente pode ser encontrada nos livros paradidáticos intitulados Grandes figuras em quadrinhos (Duque de Caxias, Getúlio Vargas, Osvaldo Cruz).
Dos anos 1980 em diante, o projeto historiográfico modifica-se. A postura dos autores da história no Brasil em quadrinhos é satírica - faz críticas à memória e ao regime político. Daí surgirem as narrativas de Lilia Moritz Schwarcz - Cai o Império: República vou ver!; de Klévisson Viana - Lampião... era o cavalo do tempo atrás da besta da vida (1988); André Diniz - Subversivos: a luta contra a ditadura militar no Brasil (2001), além das várias histórias de cidades, contadas em formado quadrinhos dispersas pelo país e estudadas por Selma Bonifácio (2005).
Atualmente várias iniciativas reforçam o caráter paradidático dos quadrinhos na disciplina escolar história: Lilia Schwarcz publica - João Carioca - A Corte portuguesa no Brasil - 1808/1821 (2007), Alexandre Valença Alves Barbosa - José Bonifácio: o desbravador (2007) e até mesmo publicações que traduzem clássicos da literatura como Os Sertões (2007) podem auxiliar nesse sentido.
Conhecida um pouco a relação história em quadrinhos/narrativa sobre a história do Brasil, voltemos agora para as formas de como a história do Brasil, local e de brasileiros ilustres foi contada nos quadrinhos. Tratamos, especificamente da situação didática em sala de aula.
A história em quadrinhos pode ser excelente recurso para auxiliar os alunos a desenvolverem um conceito metahistórico bastante importante no ensino de história: a idéia de narrativa. Da mesma forma, pode a HQ contribuir para o domínio da narrativa como gênero textual. A roteirização de uma história em quadrinhos é exatamente o exercício de reconhecimento e uso dos principais elementos da narrativa: foco, personagens, cenários, formas de recortar o tempo, intrigas e clímax.
Se, por outro lado, entendermos a afetividade e o envolvimento emocional da criança como variáveis significativas no processo de aprendizagem –, deveremos conceber a HQ como uma ferramenta bastante vantajosa. O gênero é pleno de elementos ficcionais, carregado de humor e de ironia que estimulam a identificação e, conseqüentemente, o envolvimento deste com a matéria lecionada.
As histórias em quadrinhos podem oferecer, ainda, uma leitura de fato cristalizado sob outro ponto de vista (original, problematizador, denunciante), podem estimular o estudo da história (a leitura é prazerosa) e familiarizar o pequeno leitor com a história do Brasil. Além disso, os quadrinhos podem difundir a pesquisa de ponta sobre a história do Brasil ou história local produzida nas universidades.

Sobre os usos da HQ
Os quadrinhos, como de resto qualquer forma de linguagem, não se prestam, especificamente para uma disciplina escolar. Importa mais a concepção de ensino e de aprendizagem e, mais adiante, as finalidades da atividade planejada.
Se pensarmos a educação escolar como meio de desenvolvimento de capacidades e habilidades (Coll e Martín, 2004), por exemplo, as atividades com história em quadrinhos podem ser planejadas para que o aluno adquira e/ou desenvolva as capacidades: motora – habilidade de desenhar (expressar-se graficamente); de relação interpessoal, afetiva e de atuação e inserção social – planejar histórias, elaborar e ler HQ em grupo, discutir, dialogar e respeitar as posições do colega; cognitiva – conhecer, compreender, aplicar, analisar, sintetizar e avaliar tanto os elementos estruturantes da história em quadrinhos, quanto as informações de natureza histórica elaboradas pelos alunos ou originárias da comunidade dos historiadores.
Algumas dessas capacidades são claramente identificáveis nos exemplos de uso didático de vinhetas fornecidos por José Luis Diéguez. Ao trabalhar com uma tira ou página inteira, o professor pode sugerir a busca pela idéia central (análise), a recomposição de uma seqüência (análise), as características dominantes de um personagem (síntese), a imaginação e criação do conteúdo verbal – tradução da mensagem icônica (criatividade), imaginação e criação do conteúdo icônico – tradução da mensagem verbal (criatividade), elaboração de HQ (aplicação).
Nos livros didáticos de história regional, a história em quadrinhos ainda é pouco freqüente. Ela é usada como ilustração de funções tipicamente motivadora e estética. Aplica-se à introdução de um novo tema, para estimular o aluno a ler o texto verbal, constitui o desenvolvimento de um capítulo, aliando texto icônico e texto verbal ou finaliza um texto verbal, repetindo-o com imagens e palavras, como forma de viabilizar a síntese e posterior memorização.
De uso mais freqüente, entretanto, ainda no livro didático de história regional, são as competências de conhecer e analisar (identificar personagens, colher informações factuais, modos de vida, identificar relações de causa-efeito, identificar o antes e o depois), compreensão (ler imagens, interpretar imagens, transformar linguagem icônica em linguagem verbal e vice-versa), aplicação (das técnicas de história em quadrinhos), síntese (resumir informações diversas, por quadrinhos em seqüência correta e elaborar/narrar uma história em quadrinhos), avaliação (comparar desenhos entre os colegas, comparar, hierarquizar, atribuir valores às ações dos personagens ou da história de vida do aluno retratada nos quadrinhos).
Especificamente para a sala de aula de história, Selma Bonifácio e Túlio Vilela (2006) indicam que a HQ pode ser trabalhada sob vários aspectos: 1) leitura, análise e interpretação de textos em quadrinhos; 2) discussão de textos; 3) comparação dos quadrinhos com outros gêneros; 4) leitura dos quadrinhos de forma prazerosa; 5) produção dos quadrinhos em sala de aula.
Contudo, alguns cuidados devem ser tomados. Histórias em quadrinhos podem muito bem auxiliar no desenvolvimento de conceitos metahistóricos, mas também podem agir em contrário. Além de não possibilitar reflexões sobre os rudimentos do ofício do historiador (causa, conseqüência, fonte, interpretação etc.), pode a HQ cristalizar uma versão declaradamente ficcional.
Para Waldomiro Vergueiro (2008a), por fim, o maior problema da história em quadrinhos no ensino de história pode ser mesmo a presença do anacronismo. A maioria das publicações não se dedicam à representação da realidade e mesmo aqueles que se esmeram nesse sentido cometem equívocos. O agravante é que, exatamente, a história em quadrinhos um meio muito mais eficiente de fixação de informações que os clássicos textos didáticos, puramente verbais. Para esse problema, o autor apresenta uma estratégia: descobrir o máximo de anacronismos possíveis e ressaltá-los para os alunos, indicando como seria a mais provável representação do real.
Tal problema parece que persistirá, pois há diferenças de natureza entre a escrita do historiador e a do quadrinista. O historiador, por dever de ofício, é fiel às informações extraídas nas fontes históricas. O quadrinista, sob pena de não expressar bem a mensagem, deve inventar falas, dar maior movimento à cena, abusar da oralidade nos diálogos, por exemplo, é o que afirma Alexandre Barbosa (2006). A saída para mediar esses conflitos está, efetivamente, nas mãos do professor.

Conclusões
A história em quadrinhos é um gênero narrativo consumido pela maioria dos alunos das séries iniciais. Transformado em meio de comunicação de massa, é linguagem presente nas escolas brasileiras e pode ser largamente utilizada no ensino de História. Ela é veículo de transmissão de conteúdos conceituais substantivos e estratégia de desenvolvimento de competências metahistóricas, a exemplo de tempo, narrativa, e interpretação. Como o código visual tem grande apelo entre as crianças, a HQ também pode sacralizar determinadas versões sobre História do Brasil e levar o aluno ao anacronismo. Esses desvios, entretanto, podem ser corrigidos pelo trabalho atento do professor.

Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. História em quadrinhos e narrativa histórica. itamarfo.blogspot.com.
Fonte da imagem: ROSSATTO, Edson; SILVESTRE, Jota; SOUZA, Manoel; ARAÚJO, Roberto; WILL.  História em quadrinhos: Independência do Brasil. Pesquisa histórica e argumento – Edson Rossatto. Roteiro - Jota Silvestre. Desenho – Laudo(com colaboração de Will). Apresentação – Roberto Araújo. Edição – Manuel de Souza. Capturado de: http://ginacaninana.blogspot.com/2009/11/vinda-da-familia-real-em-quadrinhos.html

Referências
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