sábado, 21 de outubro de 2006

A vulgata histórica nos livros didáticos do PNLD 2005

Detalhe da capa do Guia do livro didático do PNLD 2007. Brasília, MEC (2006).
Este texto trata dos conteúdos do ensino de história. Aqui são examinadas as 22 coleções de livros didáticos de história, inscritas, avaliadas, selecionadas, adquiridas e distribuídas entre 2004 e 2007 no ensino público brasileiro por intermédio do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2005. A comunicação discorre sobre a definição de conteúdo conceitual, as formas de isolar os conteúdos nos livros didáticos, selecioná-los e mensurar o seu papel na formação da vulgata histórica atual, bem como os modos de organização dos conteúdos em termos de proposta curricular explicitados nos livros didáticos de história. Para dar cabo da empreitada, lançamos mão de práticas da bibliometria, examinando estatisticamente as palavras utilizadas pelos autores e editores nos títulos e sub-títulos das coleções dos livros didáticos de 5ª a 8ª série do ensino fundamental, apresentadas no Guia do livro didático do PNLD 2005.

Primeiras palavras
Os títulos, a exemplo desse aí – “Primeiras palavras” –, são descritores sintéticos dos conteúdos de cada tópico, capítulo ou unidade de qualquer texto. Isso diz a teoria de produção textual. Na prática, o estilo do autor determina que tipo de informação os títulos e subtítulos deverão veicular e com os livros didáticos de história a prática não difere. Certamente, nesses livros do 3º e 4º ciclos (aqui nos referiremos a séries finais), há inovações no vocabulário e na forma de anunciar o assunto: há formas literárias – “Pátria amada idolatrada: eu, tu e eles”, “Subo nesse palco: teatro e democracia”; faz-se uso e abuso do gerúndio – “Entrando no assunto”, “Construindo uma consciência crítica”; “Descobrindo caminhos”;  e evocam-se aberturas retumbantes como: “E a terra conheceu um novo ser”, “Em busca do passado”; “A prole de adão: a primeira humanidade”, bem ao gosto da nova história e da nova pedagogia. Tudo é feito para atrair a atenção do aluno, descontrair as horas de estudo, aproximar-se do espírito e da linguagem cotidiana dos pré-adolescentes e dos adolescentes e, é claro, diferenciar-se do autor/editor concorrente.
No entanto, a grande maioria das iniciativas colhidas nas coleções do PNLD 2004 aferra-se mesmo aos conceitos claros e distintos, às formulações tradicionais do estilo natural, ou seja, frase montada na seqüência sujeito e predicado – ou artigo, substantivo, verbo e complemento –, não dispensando menções a conceitos legitimados de longa data entre os profissionais da história e da memória – “A Europa medieval e o oriente”, “O fim da idade moderna”, “A formação do povo brasileiro”, “Os expansionismos e o auto-desenvolvimento dos povos” e, no máximo, um desdobramento em subtítulo – “Rússia: o comunismo no poder”. A interrogação pedagogicamente problematizadora? Essa é de uso raríssimo. Encontramos menos que uma dezena em mais de 80 volumes analisados. Aí vão três exemplos: “Eta cafezinho bom! Será?”, “Um mundo global. Um mundo mais solidário?”, “A queda do Antigo Regime e o mundo contemporâneo: continuidade ou ruptura?”
Mas o que nos interessa neste artigo não são as formas de titular ou o grau de cumprimento de sua função lingüística. Apesar de indiciárias, como exemplificamos acima, os títulos aqui são evocados como portadores potencialmente significativos dos conteúdos a ensinar. Eles são os herdeiros das frases que, num passado distante, anunciavam os “pontos”, “lições” e “assuntos” a serem ministrados em um programa de ensino. Em suma, os títulos são concebidos neste trabalho como evidências da vulgada histórica em vigor, ou seja, as provas daquilo que pode ser considerado como o núcleo duro da disciplina escolar: os conteúdos explícitos.
Para André Chervel (1990), é esse componente curricular – os conteúdos explícitos – quem diferencia a disciplina escolar de todas as formas não escolares de aprendizagem (a família, a sociedade). É pelo exame do conteúdo que podemos perceber a vulgata pedagógica e os seus desvios mínimos. Chervel também afirma que “em cada época, o ensino dispensado pelos professores é, grosso modo, idêntico, para a mesma disciplina e para o mesmo nível. Todos os manuais ou quase todos dizem então a mesma coisa, ou quase isso” (CHERVEL, 1990, p. 203).
Considerando tal premissa, parto da hipótese de que vivemos um período de estabilidade no ensino de história, ao contrário do que anunciam muitos professores do ensino fundamental, abalados com as mudanças paradigmáticas da ciência da história (mentalidades, cotidianos, representações etc.) verificadas e absorvidas pela Universidade brasileira a partir do início dos anos 1990. Esse período de estabilidade se deve, em grande parte, a três fatores: 1. a descentralização na formatação de currículos e programas nas redes públicas estadual e municipal – não obstante a existência de orientações conteudistas nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o 3º e 4º ciclos; 2. a estabilidade do processo de avaliação promovido pelo PNLD há mais de uma década e a conseqüente legitimação desse processo por autores, editores e, em parte, professores de história; 3. A utilização praticamente solitária dos livros didáticos distribuídos pelo PNLD/FNDE como instrumentos de informação e de formação continuada dos professores de história.
Esse último fator explicita a relevância do nosso empreendimento com as coleções do PNLD/2005. É que na ausência de reflexões da Universidade e de grandes iniciativas de reformas nas políticas públicas para o ensino de história (as reformas fundamentais já ocorreram entre meados dos anos 1980 e meados de 1990), as coleções de livros didáticos distribuídas pelo Estado ditam os currículos, programas e, especificamente, os conteúdos do ensino de história. Mas, o que são conteúdos conceituais? Como isolá-los nos livros didáticos, selecioná-los e mensurar o seu papel na formação da vulgata histórica atual?

Alguns parágrafos sobre conteúdos conceituais em história
É obviedade dizer que os “conteúdos” existem desde que a disciplina escolar foi inventada no Brasil. Mas, abordar os “conteúdos conceituais” é uma atitude do final do século XX, para a grande maioria dos professores. Os Parâmetros Curriculares Nacionais talvez sejam responsáveis pela difusão dos termos conjugados (conteúdos + conceituais), embora a diferenciação esteja claramente apresentada em alguns clássicos da pedagogia há mais de 100 anos. O certo é que não obstante às diferentes idéias de educação escolar (como transmissão, aquisição, apropriação, de cultura, hominização, socialização de indivíduos etc.), veremos que os chamados conteúdos, classificados inicialmente em três, quatro e até cinco tipos, são resumíveis ao conhecido conceito de cultura cunhado por Émile Durkheim: modos padronizados de pensar, agir e sentir. A título de exemplo, citemos Herbert Spencer (1901)  que professava a educação sob o ponto de vista intelectual, moral e físico, John Dewey (1916) – comunicar hábitos de pensar, agir e sentir, Benjamin Bloom (1953) – abordar os domínios cognitivo, afetivo e psicomotor, e até o conhecido psicólogo contemporâneo Cesar Cool (2004) – desenvolvimento de capacidades no âmbito cognitivo, motor, emocional, de relação interpressoal e de inserção e atuação social.
Entre os profissionais das licenciaturas, na grande maioria dos casos (por razões que não importa discutir aqui)[1], a idéia de conteúdo ganha o sentido de apenas uma dessas àreas de desenvolvimento: a intelectual ou cognitiva. Conteúdo tem o sentido de conceito, personificando a idéia de fato histórico, data tópica, data cronológica, nome do personagem, acontecimento na curta, conjuntural ou longa duração. Vê-se, portanto, que tratar de conceitos não é apenas uma tentativa de flanar gratuitamente na empreitada de pesquisa de Andrés Chervel – história das disciplinas. Entendemos que os conceitos são fundamentais para o ensino de história, sobretudo, para pré-adolescentes e adolescentes. Essa posição está ancorada – pedagógica e historiograficamente – na proposta majoritária entre os professores de história de, por um lado, atribuir maior valor, dentro dessa faixa etária, às capacidades cognitivas do aluno e por outro, à finalidade problematizadora do conhecimento histórico de ler o passado dos indivíduos e sociedades a partir das necessidades/inquietações do nosso presente e da nossa sociedade.
Por estas concepções, o aluno de história não apreende literalmente, por exemplo, os fatos históricos da primeira República. Ele é auxiliado a desenvolver competências, habilidades, atitudes e valores que envolvam o conhecimento, compreensão, construção e relacionamento de conceitos. Por estas concepções, o aluno de história não apreende literalmente, por exemplo, os fatos históricos da primeira República. Ele é auxiliado a desenvolver capacidades, competências, atitudes e valores que envolvam o conhecimento, compreensão, construção, relacionamento e a crítica de conceitos. Por mais que reivindiquemos o exame do real e do concreto, sabemos que o mundo à nossa volta só nos é conhecido e conhecível, ou seja, nó nos é acessível por meio de conceitos. Dizendo de outra forma: só compreendemos a vida – a folha caindo, o barulho da ambulância, o troco do pão, a morte de Getúlio Vargas ou a guerra EUA/Iraque – mediante o entendimento e a manipulação de conceitos.
E quais seriam os conceitos fundamentais à vida dos pré-adolescentes, adolescentes, jovens e adultos? Não há consenso entre os pesquisadores, legisladores, professores do ensino de história. Os conceitos são conteúdos e, da mesma forma como os objetivos, as capacidades e valores a serem desenvolvidas, são hierarquizados, selecionados em meio a um jogo de forças que envolvem a elaboração de qualquer currículo: pais de alunos – que são ex-alunos –, alunos, coordenadores pedagógicos, professores, sindicalistas, secretário de educação, diretor de escola, documentos básicos das políticas públicas nacionais e locais para o ensino de história, entre outros.
E quais seriam os tipos de conceito trabalhados nos livros de história para as séries finais do ensino fundamental? Para dar coerência à análise, portanto, partimos de uma noção abonada por grande parte dos pesquisadores do ensino de história: trata-se da teoria que incorpora – entre os vários “elementos para a compreensão histórica” – pelo menos, dois tipos de conceitos a serem trabalhados no ensino de história, visando à formação de uma consciência histórica avançada (BARCA, 2006, p. 108; LEE, 2005, p. 16): 1. Conceitos estruturais da disciplina, ou seja, conceitos considerados como chave para a epistemologia histórica: fonte, prova, fato, causa, continuidade, ruptura, ficção, verdade, tempo; 2. Conceitos substantivos, ou seja, os termos que medeiam a compreensão do mundo no tempo, empregados não somente no entendimento de ações comuns à todas as sociedades – as possibilidades de generalização (poder, governo, agricultura), como também na compreensão da experiência histórica de períodos e sujeitos específicos – alforria, escambo e padroado etc.
No Brasil, mesmo sem reivindicar as pesquisas de Petter Lee, por exemplo, os Parâmetros Curriculares de História (Ensino Médio) da Paraíba diferenciam duas categorias de conceitos para o ensino de história: os conceitos relativos ao estudo da história – tempo, conjuntura, conhecimento – e os conceitos que medeiam a compreensão da experiência histórica – ética, cidadania, identidade. (cf. CALISSI e SILVEIRA, 2005, p. 34-35).
Agora que já sabemos de que tipo de conceitos aqui se trata (conceitos meta-históricos e conceitos substantivos – generalizações e singularidades), voltemos ao nosso problema principal: quais os conceitos dominantes nos títulos de capítulos, sub-capítulos ou unidades dos livros didáticos de história distribuídos pelo PNLD/FNDE entre 2004 e 2007? O que informam os títulos e subtítulos acerca da vulgata histórica em vigor no Brasil?

Títulos, palavras e sinais
Quanto são os títulos? São aproximadamente 900, encontrados em 22 coleções. Se recortados em pedacinhos, o que podem sinalizar? Fizemos essa experiência bibliométrica. Os títulos são compostos por aproximadamente 5.200 palavras. Excluídos os numerais romanos e arábicos, as preposições, artigos, pronomes, conjunções e advérbios, ou seja, mantidos os substantivos, verbos e adjetivos e excluídas as suas repetições esse número cai a 1100 palavras. Observem: são 900 títulos que utilizam um glossário de 1100 palavras. Esse é o vocabulário dos livros didáticos. É aí que encontramos grande parte dos nossos referidos conteúdos históricos, ou melhor, os conceitos meta-históricos e os conceitos substantivos.

Tabela 1 – Glossário dos títulos dos livros
Didáticos de História – PNLD 2005

Indicadores
PNLD 2005
Coleções
22
Títulos
900
Substantivos, verbos e adjetivos
1100
Fonte: BRASIL, 2005.


Peter Lee lembrou a dificuldade de separar um tipo do outro. Mas, podemos ousar em afirmar que os conceitos relativos à episteme da história aparecem – e, obviamente são – em quantidade enormemente inferior aos conceitos substantivos. São eles, história, com 26 vezes ocorrências, e tempo, que aparece 22 vezes, além dos seus demarcadores: século (27 vezes), era (16), idade (13). Sobre os demarcadores de tempo, uma curiosidade: as datas praticamente sumiram dos títulos. Menos que 2,5% identificam períodos por meio de algarismos arábicos e os que assim procedem referem-se exclusivamente aos séculos XIX e XX.

Tabela 2 – Freqüência de conceitos metahistóricos e
substantivos nos títulos dos livros didáticos
de História – PNLD 2005

Indicadores
Freqüência
Conceitos metahistóricos
104
11%
Conceitos substantivos
856
89%
TOTAL
960
100%
Fonte: BRASIL, 2005.
Nota: Foram computados os somatórios dos conceitos com freqüência
igual ou superior a 10.

Quanto aos conceitos substantivos, que nomeiam espaços/tempos/sociedades específicos, também estabelecido o ponto de corte para os que aparecem com 10 vezes ou mais, os campeões de ocorrências são os personagens: Brasil (115 vezes), Mundo (86 vezes), América (49), Europa (43), Roma (32), Grécia (22), África (13), Oriente (12) e Egito (10). Das generalizações, são exemplos: sociedade (34), cultura (32), civilização (14), poder (18), direito (14), política (14), povo (12), imperialismo (10). Dos conceitos que identificam singularidades históricas (instituições, acontecimentos, processos) de curta, conjuntural ou de longa duração, os mais reivindicados foram: guerra (48), revolução (47), império (41), colônia (33), república (32), antiguidade (30), trabalho (29), crise (26), expansão (21), indústria (17), capitalismo (16), idade moderna (16), idade média (15) cidadania (15), conquista (14), independência (14), feudalismo (13), Estado (12), idade contemporânea (12), sistema – feudal, socialista ou colonial (12), reinado (11).
Afora esses conceitos mais citados, é preciso registrar os pares ou classes de substantivos pessoal ou coletivo que continuam relevantes para contar-se a história do mundo, aparecendo quase sempre uma ou duas vezes, no máximo, com raras exceções: bárbaros, indígenas, tupinambá, apaches, apinagé, assírios, chineses, fenícios, egípcios, hititas, hebreus, persas, árabes, muçulmanos, bizantinos, cristãos, protestantes, astecas, negros, holandeses, ingleses, espanhóis, portugueses, paulistas, jesuítas, bandeirantes, germânicos, soviéticos, socialistas, nazistas, generais, coronéis, militares, ricos, pobres, senhores, escravos, fazendeiros, burgueses, comerciantes, operários, grupo e classe. Também são considerados importantes os eventos de duração breve: abolição, apartheid, cangaço, canudos, contestado e as classes de comportamento ou ações: autoritarismo, totalitarismo, trocas, vendas, auto-desenvolvimento, consumo, contestação, conflito, confronto, medo, mentalidade. Excetuando-se esses conceitos mais citados, não nos furtamos de informar os conceitos que perderam espaço – os nomes próprios de pessoas. Apenas Adão, Bonaparte, Cabral e Juscelino (citados 1 vez), Dom Pedro e Vargas (4 vezes) merecem constar na cabeça dos capítulos. Os que pareciam ter ganho, mas não ganharam espaço, foram: mulher (2 vezes) e educação (1).
Conhecidos os conceitos mais recorrentes, vejamos agora como tais conceitos são organizados em termos de proposta curricular – que na prática explicita os modos constitutivos da narrativa em sala de aula: qual currículo proposto pela maioria das obras, para além da classificação sugerida por grupos de coleções (como inicia, periodiza e finaliza a história)?

A história que se conta
A história nos livros didáticos, evidentemente, tem começo meio e fim. É a história do Brasil, a história do mundo, a história da América, como já vimos acerca dos personagens. Mas, quando a aventura humana começa? Primeira constatação (surpresa!): não há consenso entre os manuais. Metade convida à reflexão sobre a ciência da história, convida ao estudo e/ou apresenta os rudimentos do ofício do historiador. A outra metade segue direto para os conceitos substantivos. Desse ponto em diante, há ligeiro domínio da idéia de que a história deve se iniciar pela experiência dos povos sem escrita, da pré-história (6 ocorrências). Mas essa proposta rivaliza de perto com os marcos antiguidade oriental (mesopotâmia, Egito) (4) e do Brasil pré-cabralino (6), do tempo dos indígenas ou no contexto do expansionismo europeu. As demais histórias optam pelos marcos da experiência da América pré-colombiana (3) ou da antiguidade mediterrânea (fenícios, por exemplo) (1). Observem que apenas uma coleção não se inicia dessa forma tradicional: trata-se da coleção que enfoca os jovens e a história.
As formas e os marcos finais da experiência humana narrada também são importantes para o estudo da vulgata histórica que aqui se busca. Quanto a isso, os manuais distanciam-se mais ainda: Brasil, América e Mundo rivalizam-se como protagonistas e cenários dos últimos episódios. O marco temporal, entretanto, varia bastante. A história vai se encerrando ao longo do século XX, no caso do Brasil, com o advento da era Vargas, com a ditadura militar e o processo de redemocratização e apenas uma iniciativa anuncia a experiência brasileira no terceiro milênio. Com a América Latina a escrita se repete. São ressaltados os processos de redemocratização da segunda metade do século XX. Em relação ao mundo, ou seja, a Europa, África e Ásia, enfatizam-se o tempo da nova ordem mundial pós guerra-fria, marcado pelo neo-liberalismo, globalização e sociedade do consumo. Como desvio, entretanto, há uma obra que encerra a história, reivindicando o direito à felicidade.
Vejamos, por fim, como os autores recortam o tempo de forma a dar sentido à experiência humana. Já sabemos que esse tempo pode iniciar-se com a origem dos seres vivos e encerrar-se, como vimos, com a experiência do terceiro milênio. Em termos de periodização, entretanto, podemos constatar o largo emprego da clássica periodização quadripartite para a história do mundo (Antiga, Média, Moderna e Contemporânea) e do recorte tripartite para a história do Brasil (Colônia, Império, República). Essa é foi a prática de 82% das coleções. Podemos também, enfim, afirmar que a perspectiva curricular dominante (64%) e, portanto, consumida por grande parte dos professores brasileiros, é a perspectiva intercalada, ou seja, a organização da história do Brasil, América e Geral em ordem cronológica crescente de forma alternada, segundo o tempo e o espaço característicos a tais experiências. Em seguida, vêm as perspectivas convencional (18%), integrada (9%) e temática (9%).

Considerações finais
O que se pode inferir dessa exaustiva quantificação das palavras e das formas de recortar o tempo? Por hora, elaboramos algumas hipóteses que subsidiarão novas buscas no texto das obras examinadas e servirão de base para a comparação com os resultados da análise efetuada nos livros do PNLD 2008, sobretudo no que diz respeito aos conceitos substantivos: 1. a experiência do econômico definha; 2. os demarcadores de tempo fundados em datas (dia, mês e ano) continuam caindo em desuso; 3. os agentes individuais estão cada vez mais diluídos na experiência coletiva – os grandes homens estão ausentes dos títulos; 4. o politicamente correto afastou quase definitivamente algumas formas clássicas de representar os agentes históricos, como por exemplo “povos bárbaros”; 5. os tempos greco-romanos, tidos como inventores do ocidente, são considerados pedras angulares do currículo; 6. as estruturas clássicas da periodização (os quatro grandes impérios, as quatro grandes idades para o mundo, os períodos Colônia, Império, República para o Brasil) ainda se mantém; 7. a experiência do político é dominante, não somente na escolha dos conteúdos conceituais, mas também na forma de organizá-los em termos de proposta curricular; 8 a fórmula da história intercalada, como antídoto de meados do século XX ao europeísmo ou ao nacionalismo exacerbado em vigor no ensino de história ainda é a opção dos livros didáticos utilizados até este ano de 2007.
No próximo trabalho, compararemos tais resultados como as constatações sobre os livros distribuídos pelo PNLD 2008 e também com alguns estudos sobre livros e programas da década de 1930 (primeira grande normatização para o ensino de história de adolescentes) para verificar permanências e mudanças significativas na vulgata da disciplina escolar história no Brasil ao longo do século XX. Tal estudo pode auxiliar-nos a identificar algumas singularidades da história ensinada e a entender as razões das dificuldades enfrentadas pelos professores e gestores nas tentativas de implementação de mudanças radicais na educação histórica no Brasil.

Referências
AUSUBEL, David; NOVAK, j. e HANESIAN, H. Psicología educativa: um punto de vista cognoscitivo. México: Trillas, 1983.
BARCA, Isabel. Literacia e consciência histórica. Educar, Curitiba, número especial, p. 93-112, 2006.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental – História. Brasília: MEC/SEF, 1998.
BRASIL. Ministério da Educação. Guia de livros didáticos PNLD 2005: História/Ministério da Educação. — Brasília: MEC, 2004.
CALISSI, Luciana e SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Parâmetros curriculares e história: ensino médio – Paraíba. João Pessoa: s.n, [2005].
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 2, p. 177-254, 1990.
COLL, César e MARTÍN, Elena. Educação escolar e o desenvolvimento das capacidades. In: Aprender conteúdos & desenvolver capacidades. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 13-51.
DEWEY, John. Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. 4 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.
DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. 11 ed. São Paulo: Melhoramentos.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
LEE, Peter. Caminhar para trás em direção ao amanhã: a consciência história e o entender a história. www.cshc.ubs.ca/viewabstract.php. Capturado em 21 nov. 2005.
MELLO, Maria do Carmo Barbosa de. O labirinto da epistemologia e do ensino de história: um estudo em Recife. Braga, 2006. 330 p. Tese (Doutorado em Educação Histórica) – Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho.
PIAGET, Jean e BARTEL, Inhelder. O pré-adolescente e as operações proposicionais. In: A psicologia da criança. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p. 111-128.
SPENCER, Herbert. Educação intelectual, moral e física. Rio de Janeiro: Laemmert, 1901.
ZARAGOZA, Gonzalo. La investigación y La formación Del pensamiento histórico Del adolescente. In: CARRETERO, Mario; POZO, Juan Ignacio; ASENCIO, Mikel (orgs.). La enseñanza de lãs ciências sociales. Madrid: Visor, 1989. p. 165-177.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A vulgata histórica nos livros didáticos de História: uma aproximação através dos títulos de capítulos e de unidades das coleções do PNLD 2005. Texto apresentado no Encontro Nacional Pesquisadores do Ensino de História. Natal, UFRN, 2006.


Fonte da imagem
Brasil. Secretaria de Educação Básica. Guia do livro didático 2007 : História : séries/anos iniciais do ensino fundamental / Secretaria de Educação Básica. – Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006.

Notas
[1] Sobre as características cognitivas do pré-adolescente (possibilidade de libertar-se do real/concreto, trabalhar com hipóteses, combinar idéias em forma de afirmações e negações empregando o “se”, “então”, “ou...ou”, “ambos” e “nem um nem outro”) ver PIAGET, 1990. Sobre a possiblidade de os indivíduos atingirem os estágios idealizados por Piaget e sairem desses estágios em tempos diferentes, ver MELO, 2006 e AUSUBEL, 1980.  Sobre a crítica à idéia de que os adultos deslocam-se no tempo cronológico mais facilmente que as crianças ver ZARAGOZA, 1989; lee, 2006 e BARCA, 2005.

terça-feira, 20 de junho de 2006

Crítico "à beça"

Gumercindo Bessa (1859-1913)
O jurista Gumercindo de Araújo Bessa (1859/1913) ainda é conhecido como o sergipano que polemizou com Rui Barbosa sobre a propriedade do território do Acre – reivindicado pelo Estado do Amazonas – e, por conta desse litígio, teve seu nome abonado como gíria, a exemplo do título deste artigo: à beça – à farta, ao extremo.
José Calazans ficou indeciso quanto ao caráter historiográfico da sua obra (póstuma) – Pela imprensa e pelo Foro – composta de matéria vária, organizada por Prado Sampaio em 1916. Assim mesmo, resolveu relacioná-la em sua “Introdução à historiografia sergipana”. Isso porque nos artigos, produzidos entre as décadas de 1880 e 1910, poder-se-ia reconhecer “alguns aspectos da vida sergipana” e “a intenção de valorizar a Província através dos seus vultos e costumes.” (Calazans, 1992, p. 16).
Não tenho dúvidas quanto ao valor do esforço de Calazans para agregar mais um título à historiografia sergipana e estou convicto da importância dos escritos de Gumercindo para a história local. No entanto, como obra de historiador, Pela imprensa e pelo Foro é escassamente representativa. Gumercindo era crítico “à beça” e uma narrativa para ser historiográfica, naquele período, não se poderia sustentar somente na reminiscência ou no sopro demolidor característico da maior parte dos artigos da citada coletânea.
Vejam-se os textos sobre Tobias Barreto, onde o crítico combate “a canalha literária do império”. Aí ele rememora conversas com o mestre, leituras da obra do ilustre morto e conclui: Tobias não era louco, dogmático, contraditório como afirmaram os seus críticos. Mas, o ícone não saiu ileso. Gumercindo lamentou que tivesse entrado  “pela porta larga da metafísica”, na cabeça do venerado intelectual, “todas as ilusões que a dúvida metódica tinha banido.” (Bessa, 1916, p. 6).
A depuração da filosofia do alemão Eduardo de Hartmann, que não soube tirar proveito “dos achados científicos do seu tempo” e de sua pátria; o julgamento da tela “Peri e Ceci”, de Horácio Hora; o virulento ataque à gramática e aos seus cultores também carregaram as marcas desinfetantes daquele que se autodenominava “advogado da roça”. Observem: “A gramática é a aferição da língua medida a côvados, pesada a quilos, distribuída em litros; é a palavra alada, viva, borboleteante, pregada numa tabuleta morta...pelo alfinete de um entomologista das letras” (idem, p. 76).
Até mesmo uma ilustre debutante foi desacatada no dia do seu aniversário. Aracaju “é a mais vagabunda das tataranetas de Pedro Álvares Cabral. (...) Exibe-se adorável nos salões e cata piolhos escondida na alcova.” (idem, p. 80, 81).
No Diário da Manhã, com o sugestivo nome de “Ortigas”, Gumercindo afiou a sua língua sob o pseudônimo de Mafório. De lá, orientado pela leitura de um certo italiano, dissertou sobre a “salubridade das escolas primárias”, assunto, dizia ele, “nunca estudado entre nós.” E qual o desenho traçado sobre a realidade sergipana? Uma tristeza: “renques de bancos toscos, verdadeiros bancos de galerianos, enchem-se de crianças a vozear um clamor monótono de taboadas ou de cartas de nomes, numa esfalfante melopéia de idiotas, em frente de uma mesa com tinteiro, palmatória e mestre ou mestra (...) À roda deles, fechando-lhes o cárcere, paredes sem limpeza, chão poeirento, teto revestido de teias de aranha, um ambiente morno, escuro, abafadiço e triste.” (idem, p. 83).
Ora, Gumercindo “censura, combate e guerreia os maus homens e os maus hábitos, mas reserva-se o direito de aclamar e festejar os acontecimentos propícios e as individualidades meritórias”. Assim, há escritos que demonstram outras facetas. Lá estão o elogio a Fausto Cardoso, os “retalhos” sobre a procissão do Senhor dos Passos, a saudação patriótica ao destróier Sergipe, a apologia ao judiciário – “isento de corrupção”, a “força reparadora dos excessos dos outros poderes”.
Também foram transcritas algumas peças da sua lida no foro, e a série de oito artigos sobre a questão do Acre: batalha em torno da melhor leitura dos códigos em suas últimas edições, do debate sobre sintaxe, semântica, estilo, erros e omissões de erudição. Há, portanto, na obra em tela, reminiscência, instante biográfico, crônica literária, apreciação artística, filosófica etc. Mas, o elemento que atravessa grande parte do livro é a afiada navalha da crítica – faz lembrar o Silvio Romero do século XIX.
Não sei se a obra de Gumercindo resistiria aos seus próprios golpes – não conheço outros escritos, excetuando-se aqueles da coletânea. Também não é meu propósito verificá-lo. Mas, se esse tema atrair o interesse de algum curioso pela história das idéias em Sergipe, o fragmento que transcrevo em seguida ser-lhe-á de grande valia, presumo.
“Que é a seleção, senão a natureza criticando-se e corrigindo-se? E que é a crítica, senão um caso especial da seleção, a seleção consciente, racionalmente dirigida? É assim que eu a compreendo e aplico. O método é simples e eficaz. Confrontar um produto, cientifico ou artístico, com as idéias em voga, com a soma das aspirações do seu tempo é – estou certo – o mais seguro critério para decidir do seu valor, e determinar o qualificativo que lhe compete, conforme esteja aquém ou além de tais idéias e de tais aspirações.
Criticar é demolir e reconstruir. Todo sistema que se não concilia com o espírito do século, que não gravita para a nova orientação científica, está irrecurssivamente condenado.” (idem, p. 45-46).
Darwin e Spencer oferecem o estalão. Gumercindo só não deixou claro quem daria a última palavra sobre o verdadeiro “espírito” de cada século.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Crítico à beça. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 20 jun. 2006.


Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse o link: http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.


Fonte da imagem
Foto: Gumercindo Bessa - <http://www.estanciasergipe.org/estfilah.html>. Acesso em: 8 nov. 2010.

quinta-feira, 1 de junho de 2006

A escrita da história de Sebrão Sobrinho: uma análise de Laudas da História do Aracaju

Brasão do município de Aracaju-SE (1955)
Fiz os meus primeiros contatos com Sebrão Sobrinho [1] quando cursava a disciplina História de Sergipe, ministrada pela professora Lenalda Santos. Nesse período, junho de 1995, os debates em sala de aula foram tornando bem “animados” a partir da introdução dos textos de sua obra mais conhecida: Laudas da História do Aracaju [2]. Poucos eram os colegas que concordavam com a visão do autor acerca da história “do” Aracaju. Além disso, o seu jeito particular de narrar os acontecimentos tornavam-no alvo de severas críticas. Unanimidade em relação a Sebrão Sobrinho, somente acerca de sua personalidade: deveria ter sido um sujeito extremamente mal humorado e com grande complexo de inferioridade.
Os poucos que me conhecem não devem demorar a entender o porquê dessa atração inicial pelo autor: um homem com muito a dizer, mas com meios peculiares para transmitir o que pensava. Para mim só uma questão se impunha: mal humor e complexo de inferioridade não seriam o suficiente para que alguém construísse um arquivo e se debruçasse sobre ele, produzindo mais de quinhentas laudas sobre a história da capital de Sergipe. Deveria haver algo mais ... E havia: um extremado apego à pesquisa histórica. Sentimento e prática que, vez por outra, pensamos estar em extinção.
Foi a partir dessa descoberta que tomei a iniciativa de divulgar um pouco mais a obra de Sebrão Sobrinho tanto para os novos alunos (principalmente), quanto para os pesquisadores já estabelecidos que ainda não tiveram acesso, ou que, por dificuldade de compreensão, mantiveram-na afastada das referências bibliográficas dos seus trabalhos. Tentar entendê-la, seja pelo estudo das estratégias utilizadas para narrar os fatos, seja pela busca da sua lógica histórica, é o que me proponho a fazer neste trabalho.


A recepção da obra
Poucas referências são feitas aos textos de Sebrão Sobrinho. Das quatro críticas registradas em livro, duas se ocupam de toda a sua obra e as demais referem-se à natureza das conclusões contidas nas Laudas da História do Aracaju.
Para José Calazans [3], Sebrão Sobrinho foi “o pesquisador sergipano que maior contato manteve com os arquivos da Capital e do Interior”. A sua obra, embora não se apresente “rigorosamente dentro da metodologia histórica, [...] está repleta de informações e documentos, o que lhe assegura, realmente, um lugar destacado como documentário valioso para a história de Aracaju e de Sergipe" [4].
Esse “lugar destacado” parece nunca ter sido conquistado, mesmo após a sua morte, tanto que o historiador Vladimir Souza Carvalho [5] denuncia o ostracismo a que foi relegado o autor em vida e a colocação dos seus trabalhos em segundo plano. No artigo intitulado “Sebrão Sobrinho, o Desconhecido”, comenta as razões do “indiferentismo da província”. Carvalho conta a importância da professora Maria Meneses de Almeida (esposa, conselheira, secretária e patrocinadora) e o pensador Tobias Barreto na construção da obra de Sebrão e reivindica um lugar de importância dentro da Historiografia Sergipana para aquele que foi exemplo de dedicação à pesquisa histórica “numa época em que pesquisar não era moda, antes vocação" [7].
A publicação de Laudas da História do Aracaju levantou polêmicas relacionadas às causas da mudança da capital e aos seus reais promotores. O motivo principal foi a postura de Sebrão Sobrinho em considerar o Barão de Maruim como o único responsável pelo evento. Apesar desse fato, a fcobertura jornalística do lançamento das Laudas foi reduzidíssima. Apenas Zózimo Lima se demorou em maiores comentários sobre o teor do livro. Considerando Sebrão Sobrinho como historiador competente, esse crítico reafirma a tese de que o Barão de Maruim foi o maior responsável pela transferência, classificando o livro como informativo e divertido [8].
Outros autores, como Eunaldo Costa [9], elogiam o estilo elegante e acessível do historiador e os “princípios históricos em que a obra é vazada”, como é o caso de J. Alvares da Rocha [10]. Esse mesmo comentador denuncia que Sebrão tem sido alvo de perseguições desde o lançamento de outra obra sua: Tobias Barreto o Desconhecido [11].
Dentre os jornais de maior circulação [12], não constatei balanços negativos acerca das Laudas. A exceção pode ficar por conta da dubiedade de um artigo redigido por Epifânio Dória. “Dois Livros" [13] reivindica a publicação dos mais recentes trabalhos do Padre Aurélio Vasconcelos de Almeida (uma História de Aracaju e uma biografia de Inácio Joaquim Barbosa) ao tempo em que critica “os tecedores de histórias chamejantes com falso brilho de lantejoulas verbais” e informa sobre o patrocínio da Prefeitura de Aracaju ao trabalho de Sebrão Sobrinho (Laudas da História de Aracaju).
Embora os registros sejam mínimos, o debate em torno da obra parece ter sido acirrado. O próprio Sebrão Sobrinho tratou de se defender através de nove artigos [14] que se estenderam pelos meses de março a agosto de 1956. Todos esses textos tratam de um só assunto: a incompetência dos críticos sergipanos. Em setembro desse mesmo ano, Elieser Leopoldino de Santana [15] denunciou o silêncio da imprensa em relação às Laudas: “Fala-se, à boca pequena, que o desinteresse dos referidos críticos está ligado à crença de que o professor Sebrão Sobrinho, inteligente como ele é, muito imaginoso, seja capaz de criar flagrantes que, historicamente, nunca existiram”. O próprio Santana diz ser um absurdo esse tipo de comentário: “Por que essa gente sempre, tão pronta a duvidar dos outros não sai da toca e não vai para as colunas dos jornais dizer o que sente e o que quer?” [16] Esse mesmo artigo informa da boa receptividade das Laudas, no Rio de Janeiro dos livros sobre Tobias Barreto, Genealogias sergipanas e História de Sergipe, produzidos por Sebrão (ainda inéditos) e lamenta o ostracismo a que o autor foi relegado.
Dos poucos contestadores do historiador, destaco a figura de Enoch Santiago [17] que, munindo-se dos depoimentos de Inácio Marcondes Homem de Melo, Manuel dos Passos de Oliveira Teles e Abreu Cruz, valoriza a competência intelectual e administrativa de Inácio Barbosa e critica o tratamento deselegante concedido pelo autor das Laudas ao fundador da capital.
Enoch Santiago refere-se ao texto de Laudas da História de Aracaju, como “apreciável trabalho” e ao seu autor como “ilustre professor" [18], embora não compreenda o “afã desordenado [de Sebrão] em despojar Inácio Joaquim Barbosa de glória do ato da fundação" [19]. Para o partidário de Inácio Barbosa, “faltou ao escritor um aprumo histórico e ético, uma medida de segura apreciação dos acontecimentos; uma visão tranquila dos fatos, para o ajustamento dêles entre Inácio Barbosa, presidênte da Província e João Gomes de Melo, chefe político da região, na época da mudança."[20] Em síntese, a crítica de Enoch Santiago ao texto de Sebrão Sobrinho tem objetivo certo: realçar as qualidades pessoais do Presidente Barbosa, “homem de ação, enérgico, e até certo ponto voluntarioso" [21].
A mais lúcida e substanciosa crítica ao texto de Laudas da História de Aracaju foi feita por Bonifácio Fortes [22], numa conferência que marcou o centenário de falecimento de Inácio Joaquim Barbosa (24/10/1955). O Govêrno Inácio Barbosa apresenta-se como inovação metodológica nos estudos que tratam da transferência da capital. O que seu autor pretende é buscar “a verdade do confronto, do estudo entre a infra-estrutura e a super-estrutura sociais”, já que os historiadores [entre eles Sebrão] “restringiram-se apenas aos fatos sem cuidarem da realidade social, econômica e geográfica do meio." [23]
Nesse estudo, 17 parágrafos referem-se diretamente a Sebrão Sobrinho. Expressam críticas ao personalismo do autor (em favor do Barão de Maruim) e à demasiada ênfase em fatos irrelevantes (segundo Bonifácio Fortes) para a História. A crítica se fundamenta em outros clássicos sobre a transferência da capital (por exemplo, Aracaju: contribuição à História da Capital de Sergipe [24]) e no próprio texto de Laudas da História do Aracaju para mostrar quanto são contraditórias as afirmações de Sebrão (subserviência, parcialidade, incompetência etc.) acerca do desempenho administrativo de Inácio Barbosa.
As intenções de Bonifácio Fortes e Enoch Santiago são semelhantes: resgatar a imagem de Inácio Joaquim Barbosa, bastante deteriorada depois da publicação de Laudas. Esse propósito é assumido, enfaticamente, no final dos dois estudos e, nesse texto, em particular, o desabafo de
Bonifácio Fortes é contundente: “Lamentavelmente êsse infatigável pesquisador Sebrão Sobrinho empana os méritos de sua obra com a interpretação personalista dos acontecimentos da mudança, negando a todo custo a contribuição decisiva de Inácio Barbosa." [25]
 [...] Façam o que fizerem seus detratores, Inácio Joaquim Barbosa permanecerá no carinho e no respeito (sic)." [26] 
O perfil das críticas feitas aos trabalhos de Sebrão e, sobretudo, ao texto de Laudas da História de Aracaju indica que as mesmas estão bem próximas do ideal cientificista da História. Por essa perspectiva, avalia-se um texto histórico pela sua capacidade de fornecer o aparato metodológico que lhe permita ser criticado, como também da sua capacidade de descrever o real (objetividade e clareza).
Nesse sentido, algumas “imperfeições” estilísticas e metodológicas são apontadas. As últimas aparecem sob duas formas: a omissão de referências bibliográficas e documentais das provas utilizadas pelo autor e ao método propriamente dito (personalista, psicológico, factual etc.).
A maneira particular da escrita histórica de Sebrão (“as características clássicas”), justificada por Vladimir Carvalho [27] como traço de todo autodidata que trabalha isoladamente, sem a presença de um crítico severo, é realmente uma marca inflexível do estilo do autor, embora esse estilo não seja motivo suficiente para relegá-lo a um plano inferior.
Sobre a omissão de fontes, informa Carvalho da existência do arquivo particular de Sebrão que servia como base para as suas afirmações. Muitas informações eram sonegadas pelo autor em razão do clima de perseguição política e pelo temor das cópias (fraudulentas) que outros historiadores poderiam fazer.
Apesar dessas considerações, não encontrei um só questionamento de “dados objetivos” narrados em Laudas da História de Aracaju (datas, locais, estatísticas, nomes etc.). Ao contrário, seus interlocutores utilizaram-se das suas informações para contestá-lo e, contraditoriamente, acabaram por abonar o seu lastro empírico28 (elemento de valorização da escrita historiográfica a que me referi no parágrafo anterior).
Em relação ao método propriamente dito, existe a contestação explícita de Bonifácio Fortes (uma curiosa combinação dos conceitos utilizados pelo materialismo histórico – classe dominante, elite, infraestrutura, capitais nacionais, centro produtivo etc. com conceitos de Oliveira Viana – clãs organizados e de Gilberto Amado – elites imperiais) ao “personalismo extremado” de Sebrão. Apesar de implementar uma nova abordagem, de apresentar novas conclusões acerca da transferência da capital, o afã de restituir ao pódium a figura de Inácio Barbosa leva o crítico a cometer os mesmos “equívocos metodológicos” de Sebrão Sobrinho (o personalismo e o apelo apaixonado).
Enfim, as críticas endereçadas a Sebrão Sobrinho quanto ao estilo, às estratégias de argumentação e ao método propriamente dito são superficiais, contraditórias e, portanto, inconsistentes; embora tenham declarado intenção, não se encaminharam pelo “progresso da ciência histórica”. A passionalidade e o partidarismo político têm sido o motor da crítica historiográfica. Não é pura coincidência o fato da participação destacada de Enoch Santiago (quase quarenta anos antes - 1917) nas cerimônias de transferência dos restos mortais de Inácio Barbosa para a Praça José do Faro (17 de março de 1917): uma tarefa encampada com júbilo pelo guardião da “arca sagrada das nossas tradições”, o IHGS.
As lacunas deixadas por essa crítica (acerca do estilo, da mensagem do texto e do aparato metodológico utilizado) receberão tratamento especial neste trabalho que se inicia com uma noção de História diferente e, por conseguinte, abordagem, metodologia e conclusões também diferenciadas.


Proposta analítica
A “análise [29] de historiografia" [30] é uma atividade essencial para a produção do conhecimento histórico e para a reflexão epistemológica da disciplina. A crítica é inerente a ela e não há como efetuar análise se esquivando da crítica do discurso histórico. Entretanto, fazer análise de historiografia, neste caso específico, não será responder a um questionário sobre fontes, método, objeto, categorias analíticas etc.; nem diluir o texto num esquema estatístico que observe os aspectos sônico, gramático e figurativo; e nem liberar à intuição e construir um novo Laudas da História do Aracaju. Não é ainda estabelecer o topos dominante de sua época ou negar qualquer participação do “homem” Sebrão Sobrinho na escrita produzida pelo mesmo. A minha proposta é um tanto anárquica [31], nesse sentido. Ela pretende responder a maioria dos objetivos propostos pelos métodos vistos aqui, mas sem a preocupação de eleger determinantes. [32] 
É oportuno citar os comentários de Feyrabend que parecem ter sido criados exclusivamente para esse trabalho: 
[uma metodologia pluralista permite] comparar idéias antes com outras idéias do que com a ‘experiência’ e [...] antes aperfeiçoar que afastar as concepções que forem vencidas no confronto. [...] O conhecimento, concebido segundo essas linhas, não é uma série de teorias coerentes a convergir para uma doutrina ideal; não é um gradual aproximar-se da verdade. É, antes, um oceano de alternativas mutuamente incompatíveis (e, talvez até mesmo incomensuráveis). [33] 
 Encaro a História como um gênero da Literatura o que não pressupõe anular as suas especificidades. O próprio Guiraud [34], ao apresentar os nove gêneros literários (cinco para a poesia e quatro para a prosa), distingue claramente o gênero histórico dos gêneros didático, oratório e romanesco. O vínculo História-Literatura não é reconhecido somente por lingüistas (Guiraud), sociólogos (Barthes) ou historiadores vanguardistas (Withe). O depoimento de Ed. Fueter [35], na mais importante análise da Historiografia moderna que tenho conhecimento, é bastante esclarecedor quanto a esse caráter.
A filosofia da História é também um aspecto a ser considerado. Separo o trabalho do historiador e o conhecimento específico do filósofo da História. Esse elemento, que tem relação direta com o método, aproxima as propostas analíticas de Rodrigues e Barthes e, neste trabalho, recebe o nome de significação.
O estilo é uma categoria privilegiada nesta análise; tem o sentido genérico de maneira de escrever, sinônimo de retórica e tem a dupla função de embelezar e persuadir. É encarado em suas instâncias individual e coletiva, como um desvio em relação ao padrão da Historiografia da época (leia-se IHGS década de 50) e estudado dentro da “oposição” binária conteúdo/forma, ao modo das assertivas de Barthes.
Concluindo, concebo o texto historiográfico como um tecido e com infinitas linhas a se entrecruzarem. O historiador é um transformador de fórmulas, prefigurador, encenador, atribuidor de sentidos etc.; um ser com poderes bastaste limitados, de certa forma semelhantes às concepções de Barthes e Withe. A tarefa desta análise consiste, portanto, em “desfiar o texto” dentro dos limites que a minha cultura histórica permite.


Sumário
Introdução
Recepção da obra
Proposta analítica
Enunciado
            Resumo de Laudas da História do Aracaju         
Enunciação
            Aspectos estilísticos da composição
            O capítulo
            A frase
            A palavra
                        Neologismos
                        Indianismos
                        Vulgarismos
A significação
            Filosofia especulativa da história
            Filosofia crítica da história
                        Problemas críticos
                        Problemas metodológicos
Conclusão
Referências


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1 José Sebrão de Carvalho Sobrinho (1898-1973) nasceu em Itabaiana/Se, exerceu as funções de professor, inspetor de educação, promotor público poeta e jornalista. Foi sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e da Associação Sergipana de Imprensa. Redator de O Nordeste, O Cálamo (1928), Mocidade (1946) entre outros. Além de produzir diversos artigos sobre a História de municípios sergipanos em revistas e jornais, publicou: Sociedade __[?], 1933; Tobias Barreto o Desconhecido: Gênio e Desgraça. Aracaju: Imprensa Oficial, 1945; Monsenhor Silveira: O Fundador da Imprensa de Sergipe. Aracaju: ASI, 1947; Laudas da História de Aracaju. Aracaju: Regina, 1955; Filarmônica Nossa Senhora da Conceição: A mais antiga Instituição Musical do Brasil, Fundada no Século XVIII. Itabaiana, __[?], 1956; Fragmentos da História de Sergipe. Aracaju: Regina, 1972. Possui alguns títulos inéditos, como: Tobias Barreto o Desconhecido,v. 2, 3 e 4; [Genealogia das Principais Famílias Sergipanas]; História de Sergipe; e Apontamentos Históricos da Comarca de Itabaiana.
2 idem.
3 Calasans, José. Introdução ao Estudo da historiografia Sergipana. In: Aracaju e outros temas sergipanos: esparsos de José Calasans Brandão da Silva. Aracaju:Governo de Sergipe/FUNDESC, 1992. p. 07-37.
4 idem., p. 20/21.
5 Carvalho, Vladimir Souza. Sebrão Sobrinho, o desconhecido. Momento, Revista Cultural da Gazeta de Sergipe, Aracaju, n. 8, p. 29-30, dez. , 1976.
7 ibid., p. 30.
8 Zozimo Lima. Variações em Fá Sustenido. Correio de Aracaju, Aracaju, 21, maio, 1955. p.01; Correio de Aracaju, Aracaju, 12, out., 1955. p. 01.
9 Costa, Eunaldo. Laudas da História do Aracaju. Sergipe Jornal, Aracaju, 31, mai., 1955. p. 01
10 Rocha, J. Alvares da. Sebrão Sobrinho e o centenário de Aracaju. Correio de Aracaju, Aracaju, 23, jul., 1955. p. 06.
11 Sebrão Sobrinho. Tobias Barreto o Desconhecido: Gênio e Desgraça. Aracaju: Imprensa Oficial, 1941.
12 Correio de Aracaju (1955-1957); Sergipe Jornal (1955-56); Diário de Sergipe (1955-57); A Cruzada (1955-56).
13 Doria, Epifânio. Dois Livros. Sergipe Jornal; Aracaju, 30, mar., 1956. p. 01.
14 Sebrão Sobrinho. Crítica Científica. Correio de Aracaju, Aracaju, 28, mar., 1956. p. 02 (e ainda: 10 e 20 de abril; 27 e 30 de maio; 18 de junho; 3 e 31 de julho; e 18 de agosto de 1956).
15 Santana, Elieser Leopoldino de. Laudas da História de Aracaju. Correio de Aracaju, Aracaju, 01, set., 1956. p. 04.
16 idem.
17 Santiago, Enoch. Mudança da Capital. Revista de Aracaju, Aracaju, n. 6, p. 23-36, 1957.
18 ibid., p. 27.
19 ibid., p. 29.
20 ibidem., p. 29-30.
21 ibdem., p. 36.
22 FORTES, Bonifácio. O Governo Inácio Barbosa. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Aracaju, n. 22, p. 81-104, 1955-58.
23 ibid., p. 81
24 Calasans, José. Aracaju e outros temas sergipanos: esparsos de José Calazans Brandão da Silva. Aracaju: Fundesc/SEEC, 1992. 141p.
25 ibidem,. p. 99.
26 ibidem., p. 104.
27 op. cit.
28 Vejam-se (além do uso das fontes de SEBRÃO para contestá-lo) os qualitativos imputados pelos seus críticos mais contundentes: “alentada”; “opulenta”; “apreciável’ (em relação a Laudas da História do Aracaju); “ilustre”, “notabilíssimo pesquisador”; “inteligente”, “infatigavel”; “minuncioso” (em relação a Sebrão).
29 "...decomposição de um todo em suas partes constituintes/exame de cada parte de um todo tendo em vista conhecer sua natureza, suas proporções, suas funções, suas relações etc.”- Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguêsa.2 ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1986. p. 113.
30 O discurso histórico.
31 A utilização dos argumentos de Feyrabend nesse trabalho não deve ser entendida como uma opção literal pela vertente anarquista (ou dadaísta, o autor assim o prefere) em relação à epistemologia histórica; o tudo vale na ação metodológica tem um sentido definido e é uma proposta construtiva; é antes de tudo “recorrer a hipóteses que contradizem teorias confirmadas e/ou resultados experimentais bem estabelecidos”. (Feyrabend, p. 10.)
32 Omiti da monografia original uma digressão em torno das propostas analíticas de José Honório Rodrigues, Peter Gay, Hayden White e Roland Barthes.
33 Feyrabend, P. Contra o... p. 40.
34 Guiraud, Pierre. A estilística. 2 ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978. p. 19-20.