sábado, 23 de abril de 2005

A penúltima corografia de Aracaju

O que é uma corografia? Já escrevi noutra oportunidade que a palavra é abonada nos dicionários do século XIX como descrição de uma localidade, reino, região, uma terra ou um país. Mas, foi Domingos Vieira (1873) quem registrou o sentido mais preciso: “descrição de um país, assim como a geografia é a descrição da terra, e a topografia a de um lugar particular”. (A Semana em foco, 05/09/2004).
Esse tipo de questionário já  existia no século XVIII. Aracaju, contudo, só ganhou corografia  quando o governo republicano resolveu massificar a educação primária  e inculcar a idéia de limites e potencialidades da cidade-capital. Elas estão inseridas nos livros didáticos destinados à disciplina.
O baiano Luiz Carlos da Silva Lisboa (1897) foi o primeiro a produzir algo do gênero. Depois vieram Laudelino Freire (1898), Severiano Cardoso (189?), Oliveira Telles (1917) e Clodomir Silva (1920). Em 1931, algum intelectual que não se quis identificar – talvez Ávila Lima ou mesmo um tipógrafo sensível e conhecedor das fontes estatísticas – compôs uma “Resenha chorographica e historica” como introdução ao Álbum fotográfico de Aracaju.
O impresso é, dominantemente, iconográfico. É uma  obra rara. Examinei-o na Biblioteca Nacional em 1998. O professor Cleber Santana, que trabalhou sistematicamente com fotografias aracajuanas, recuperou-o para mim, recentemente. As fotografias são belíssimas. Devem ser expostas em alguns desses eventos do sesquicentenário da cidade.
O escrito é, porém, o objeto da minha atenção. Incluso na cadeia de testemunhos do gênero, ele ajuda a formar a série de dados estatísticos sobre a cidade e o município de Aracaju entre as décadas de 1890 e de 1950. Isso se se puder relacionar a Enciclopédia dos Municípios (IBGE, 1959) como “a encarnação mais evoluída” do gênero corográfico. Por isso, a explicação para o título  “penúltima (e não última) corografia de Aracaju”.
A corografia dos anos 1930 mantém alguns traços dominantes do gênero. O personagem é a cidade em pedra e cal. E ela vale aquilo que potencialmente pode produzir e fazer circular; daí, a ênfase no estágio das indústrias, nas vias de comunicação e na quantidade e qualidade dos equipamentos urbanos – portos, praças, edifícios públicos, etc. Vale também pelo bem estar que proporciona aos habitantes do centro – três praias, ruas largas e alinhadas, praças retas e regulares. Os moradores comuns são númerosq estatística (40 mil habitantes), e os ilustres são memória – três estátuas, três bustos e um obelisco a Tobias Barreto, Pinheiro Machado, Fausto Cardoso, Olímpio Campos, Oliveira Valadão, Teófilo Dantas e Inácio Barbosa, respectivamente.
A narrativa histórica stricto sensu configura-se na resolução legislativa de fundação, nome do idealizador, origem da planta – o modelo é Fortaleza (?) –, e nos eventos que a modificaram – as idéias do presidente Salvador Correia de Sá, a extinção da praça 13 de Maio e a implantação do abastecimento d’água e é só.
Com isso, não quero dizer que a “Resenha corográfica e histórica” pouco signifique. Sua relevância deve ser avaliada dentro da série de textos aqui citados. Mas, para que não se perca mais tempo com divagações acadêmicas, segue um aperitivo da corografia. Com o trecho abaixo, penso que o leitor ganhará uma base referencial para refletir o porquê de a cidade completar cento e cinqüenta anos e continuar a ser representada, agora na mídia televisiva, como uma mocinha inocente, vestida de branco e disfarçada de tabarôa. Essa representação ainda lhe cabe? Só o mito de origem explica essa eterna juventude.
“Aracaju: resenha corográfica e histórica
A cidade de Aracaju está situada no município do mesmo nome, à margem direita do rio Sergipe, em forma de anfiteatro, dispondo de uma área litoral de terra de uma légua ocupada quase na mesma extensão até além das dunas de areia, situadas ao poente. (...) Tem a forma de uma península, de istmo largo, o qual se extrema entre o rio do Sal, que é um braço do rio Sergipe, e o Poxim.
Cortam a cidade os remanescentes dos antigos riachos: o Aracaju, entre a cidade e o bairro Industrial, que permite o acesso àquele bairro por uma elegante ponte; o Tramandaí, ao sul, que às marés cheias espraia-se ao sul e a oeste. (...).
Divide-se a cidade nos seguintes bairros: Santa Isabel, Industrial, Presidente Barbosa, Santo Antônio, Tebaidinha e Siqueira Campos. Todos eles servidos por linhas de bondes e de acesso fácil por automóvel.
Suas ruas são em número superior a duzentas.
A capital é servida pelas excelentes praias balneárias de Atalaia e Atalaia Nova, ambas situadas à margem do Atlântico. O rio Sergipe, que banha a cidade, presta-se também aos banhos de mar. (...).
Aracaju conta duas fábricas de tecidos, três de sabão, três de gelo, uma de cigarros, uma de águas gasosas, três de chapéus de sol, uma de meias, três de bombons, quatro de móveis, duas de óleo de coco, uma de óleo de algodão e quéque, duas de pulverizar açúcar, uma de corda de fibra de coco e tabacarias, grande número de fábricas de malas, tamancarias, sapatarias, charutarias. As serrarias são quatro, sendo que a de Macedo & Cia. corta madeira colhida no Estado.
É a cidade mais futurosa dentre suas contemporâneas.”

Para citar este texto
OLIVEIRA, Itamar Freitas de. A penúltima corografia de Aracaju. A Semana em Foco, Aracaju, 23 abr. 2005.


sábado, 9 de abril de 2005

As Laudas da história do Aracaju

Essa é a quarta vez que trato de Sebrão Sobrinho nos últimos dois anos. Neste artigo, entretanto, não comentarei sobre a teoria da história, identidade sergipana, nem do valor historiográfico das suas Laudas da história de Aracaju, obra relançada na última terça-feira (15/03/2004). Quero, apenas, transmitir uma ou outra orientação de como ler os textos do historiador itabaianense “para que as gerações de hoje e de amanhã”, como diz Vladimir Carvalho, “possam se debruçar sobre esse livro, de leitura difícil, mas agradável.”
Do agradável não se pode falar. É uma experiência particular. Eu já tive a minha; o Vladimir Carvalho, a dele e espero que todos os que comprarem a obra apreciem, pelo menos, um capítulo. Aqui, é sobre o difícil que se deve comentar.
E de onde vem a complexidade da leitura? Ela está, principalmente, nas formas de enunciação, no vocabulário empregado e na construção da sua frase, enfim, no particularíssimo estilo de Sebrão.
Para ler e compreender as Laudas, é preciso aceitá-la como desvio, como o diferente em matéria de ponto de vista do narrador. A história de Aracaju é contada, predominantemente, em primeira pessoa. E a estratégia de convencimento surte efeito. Quase se pode ver e escutar o Sebrão batendo no peito e dizendo: “eu não condeno isso...”, “eu creio naquilo...” ou ainda “melhor que eu, somente o notável Felisbelo Freire”.
A intrusão do narrador também é coisa corriqueira. Um exemplo: quando comenta sobre as “fontes processuais da história de Sergipe” (é o primeiro capítulo), ele interrompe a narrativa para rememorar a terra natal: “que saudade de minha infância, das noites plenilúnias de Itabaiana, de meus brincos infantis”... e depois lembrar a brincadeira de manja (hoje, chamada de pega-pega): Manja!/Manjaré!/Farinha de Coco?/Camané!/Valeu, valeu?/Pegue eu, que sou seu!”. (p. 54).
O leitor não estranhe aquele emprego simultâneo de palavras em inglês, francês, latim, tupi, grego, entre outros idiomas: isso é um traço de formação. Não reprovem a quebra de fronteiras entre a linguagem escrita e a oralidade, entre as fórmulas do vulto e as do português arcaico.
Também, não se espante o leitor com as dimensões da obra: mais de quinhentas páginas. O plano não representa a “história em migalhas”, tampouco um “aglomerado indigesto de fragmentos”. Há coerência na disposição das cinco partes que acomodam os trinta e nove capítulos: anúncio, antíteses, teses, provas das suas afirmações, sugestões e autocrítica.
Descontadas as licenças à língua culta, citadas anteriormente, o que vai facilitar a leitura da obra de Sebrão é a compreensão da sua frase típica. A digressão é freqüente, tornando o texto, de certa forma,  pesado e moroso. O itabaianense mistura informações elementares e secundárias, e o leitor impaciente pode abandonar o livro sem saber, por exemplo, o final da história do Santo Antônio do Aracaju. Um procedimento, entretanto, pode evitar esse problema: toda vez que se deparar com essa frase quase gongórica, basta saltar da primeira a última linha e depois refazer a leitura, consumindo as minúcias de Sebrão, como se vê na citação seguinte: “Pobre Santo Antônio do Aracaju! Enquanto o do convento de Santo Antônio da Cidade de San-Cristovam de Sergipe, desde 1826, como os demais de quase todas as capitais do Império, foi agraciado capitão do Exército por D. Pedro I, a exemplo de Lisboa, o da colina de Santo Antônio do Aracaju, possuidor de um quadro contendo um quarto de légua para cada uma de suas faces, patrimônio instituído por um dos antepassados do autor destas linhas, Antônio Mendonça Furtado, em data imemorial, anterior a 13 de outubro de 1788, quando alcançou sentença para administra-lo o padre Luís de Brito Soares, tio de d. Maria Custódia dos Anjos, espôsa de Luís Francisco das Chagas, mais conhecido pelo hipocarístico Luizinho, o maior proprietário da barra da Cotinguiba, da praça Fausto Cardoso (a do Palácio), até ao Tramandaí, com os fundo correspondentes até à Lagôa da Pomba, perdeu tudo, ficou pobre sem nada!” (p. 168).
Para finalizar, duas ironias bem ao modo de Sebrão. Logo ele, que atirava para quase todos os lados, observa, pela segunda vez, a elite intelectual e a nata dos poderes constituídos reunidas a lhe renderem merecidas homenagens, sob o teto do Instituto Luciano Barreto Júnior. De onde estiver o autor, dará muitas gargalhadas a partir de agora.
Outro dado importante – e não é com prazer que anuncio: há cinqüenta anos Sebrão sobrinho escrevia as suas Laudas sobre a história do Aracaju. Hoje, comemoramos o sesquicentenário de fundação da cidade e não há notícias de que nesse meio século algum historiador tenha se empenhado na pesquisa básica para nos oferecer uma síntese, marcando alguma distância em relação à Tese de  José Calazans e às Laudas de Sebrão Sobrinho. Por isso, e porque o poder (digo, o saber) não admite vácuo, retorna o historiador itabaianense, pelas mãos do seu sobrinho-neto, como se quisesse dizer: “vocês vão ter que me engolir por muitos anos mais”. “Que viva então a obra de Sebrão!
Gostaria de dar os parabéns aos patrocinadores da reedição – Colégio Amadeus, Fundação Oviêdo Teixeira, Prefeitura Municipal de Aracaju e Instituto Luciano Barreto Júnior – e agradecer, especialmente, ao historiador Vladimir Carvalho pelo trabalho de recuperação da memória do autor.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. As Laudas da história do Aracaju. A Semana em Foco, Aracaju, 09 abr. 2005.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse:
http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html>.