domingo, 29 de agosto de 2004

Os tesouros da biblioteca do IHGS

Fachada e brasão do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.Imagem de abertura do site da instituição. Aracaju-SE.
A biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe guarda muitos tesouros. Foi construída ao longo dos noventa e dois anos do grêmio e comporta acervo de aproximadamente cinqüenta mil volumes entre periódicos, folhetos, separatas e livros. É uma pena que somente 10% desse patrimônio seja do conhecimento da geração nascida com a Universidade. Os catálogos são insuficientes. Qualquer esforço de organização profissional de um conjunto com tais dimensões consumiria anos de trabalho de uma equipe, ou mesmo a vida de uma pessoa, como foi o caso do esforço de Epifânio Dória.
Mas, com a invenção do microcomputador e o cometimento de algumas heresias em matéria de biblioteconomia, a tarefa pode se tornar exeqüível em alguns meses. Essa foi uma das metas anunciadas pela atual diretoria do IHGS, eleita para o biênio 2004/2005. Trilhando pelas orientações do presidente – “socialize tudo, mas não destrua o que já foi feito” –, os atuais responsáveis pelo acervo têm o prazer de comunicar os primeiros passos dessa reorganização.
Em cento e cinqüenta dias de trabalho, já é possível ter acesso a 100% de, pelo menos, três importantes coleções: a coleção João Faria (AG), o acervo de obras de referência (OR)  e conjunto bibliográfico da Sessão Sergipana (SS).
Diêgo Freitas e Christinilton Gally
(estagiários) em trabalho de higienização.
Acervo bibliográfico do IHGS
em processo de separação.
A primeira coleção constituiu-se a partir das “doações honrosas” do desembargador João Fontes Faria. É composta por mil e setenta e quatro obras sobre história da arte, literatura, história do Brasil. Há também coleções de periódicos de circulação nacional como Vamos Ler, enciclopédias e bibliografia de autores sergipanos. Para avaliar a nobreza do ato do dr. João Faria, hoje sócio benemérito do Instituto, remeto o leitor ao artigo de Ibarê Dantas, publicado em junho último (“Doações honrosas”. Jornal da Cidade, 24 jun. 2004).
A segunda coleção possui trezentos e noventa exemplares de enciclopédias e dicionários. Na rubrica enciclopédias (e assemelhados) estão as conhecidas Barsa e Larrouse, bastante úteis aos eruditos e aos estudantes do ensino fundamental e médio. Mas, também compõe o acervo as grandes coleções que tratam da história das civilizações, história da arte e um rico repositório sobre uma centena de gênios da pintura universal.
Em primeiro plano, Saionara
Nascimento (estagiária) registra
os livros em banco de dados.
Os dicionários, que fazem a delícia do escrevinhador, estão situados na sala de leitura do IHGS. São de todo tipo: há os de sinônimos, etimológicos, prosódicos e os de definição – em língua portuguesa, inglesa, alemã, italiana, persa, latina, tupi, yorubá. Há também dicionários especiais – de história, corografia, de artistas, educadores, historiadores, de genealogia, filosofia, política, geologia, mitologia, de fábula, folclore, temas populares, gíria, provérbios, de plantas úteis e de vida sexual. Os dicionários biográficos ou biobibliográficos são os mais numerosos, depois dos de língua portuguesa. Cobrem autores sergipanos, paulistas, cearenses e brasileiros de forma geral.
Entre os raros, pelo ano de produção, a Biblioteca do IHGS guarda uma dúzia de volumes do Dictionnaire Philosophique, de Voltaire (1827, 1829), o Magnum Lexicon Novissimum Latinum et Lusitanum (1846), alguns títulos da língua brasileira/lusitana editados em 1813, 1832, 1850, 1873, 1899, e também os prestigiados do século passado, como Caldas Aulete (1958), Laudelino Freire (1939) e Antenor Nascentes (1958).
O último tesouro organizado foi o conjunto de livros folhetos e separatas da Sessão Sergipana. Sob essa rubrica, sucessivas gerações dos sócios do IHGS reuniram peças submetidas a três critérios: 1) ser obra de sergipano nato; 2) ser obra de autor aqui radicado; 3) obra que trate de Sergipe, de sergipanos ou de autores aqui radicados. O acervo já chegou a três mil e trezentos títulos, produzidos por mil autores, aproximadamente.
Entre os contribuintes vivos, seguem imbatíveis o Governador João Alves Filho (65 títulos) e Maria Thétis Nunes (28). Das instituições, o Governo do Estado está na dianteira da produção, seguido da Universidade Federal de Sergipe e da Prefeitura municipal de Aracaju.
Biblioteca do IHGS em fase final
de organização. Foto: Acervo do
IHGS (2008).
Biblioteca do IHGS em fase final
de organização. Ao fundo, estagiário
em atividade. Foto: Acervo do IHGS (2008).
Esses números, evidentemente, nada podem informar sobre o perfil dos autores e livros. Mas, não deixam de ser indiciários sobre a política de recolhimento da bibliografia sergipana encetada pelo Instituto. Esses dados são também indicadores do interesse de alguns pela conservação de seus feitos na história de Sergipe. Não há classificação por assunto. Contudo, um exame de sobrevôo basta para verificar que a contribuição literária strictu sensu foi diminuta em relação às obras de ciências humanas e sociais e aos relatórios administrativos.
O leitor mais rigoroso estranhará a presença de roteiros e até mesmo de catálogos telefônicos. Também estranhei, a princípio. Mas, lá estão e lá ficarão.O próprio tempo de moradia de tais publicações no acervo já lhes concedeu legitimidade e cidadania. Quem descartaria um guia de Aracaju com esboços a mão livre de uma Aracaju dos anos 1950, limitada entre o bairro industrial e o rio Tramandai? Quem descartaria originais de peças teatrais do século XIX, produzidas por Severiano Cardoso simplesmente pelo fato de não estarem impressas?
Todo esse acervo foi inventariado e catalogado por bolsistas do curso de licenciatura em história da Universidade Federal de Sergipe, financiados pela própria UFS e, principalmente, pela Secretaria de Governo da Prefeitura Municipal de Aracaju, a quem o Instituto não cansará de agradecer. Mas, o melhor de tudo mesmo é que esse acervo já está à disposição dos leitores. O IHGS aguarda a sua visita e também a sua contribuição.


Fontes das imagens
Fachada e brasão do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. <http://www.ihgse.com.br>. Acesso em 27 nov. 2010.
Biblioteca do IHGS em fase final de organização. Ao fundo, estagiário em atividade / Biblioteca do IHGS em fase final de organização. <http://www.ihgse.com.br/biblioteca.asp>. Acesso em 27 nov. 2010.
Material em processo de separação / Biblioteca do IHGS em fase final de organização / Saionara Nascimento (estagiária) registra os livros em banco de dados. Acervo de Itamar Freitas.



Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Os tesouros da biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 29 ago. 2004.<http://itamarfo.blogspot.com/2010/10/biblioteca-do-instituto-historico-e.html>

domingo, 22 de agosto de 2004

Silvio Romero e a pedagogia da História

É sim! O dr. Silvio Romero também opinou sobre o ensino público brasileiro. Tanto o fez que o Jorge Carvalho reservou boa parte dos quatro anos do doutoramento para compreender a sua proposta culturalista. Romero criticava a americanização. “Não aceitava que o ensino fosse meramente industrialístico e visasse apenas o ganha-pão imediato... reduzido a uma aptidão mecânica... preparado em doses como se faz com uma receita de bolos ou com uma lista de compras.” (Nascimento, 1999, p. 218-219).
As “notas sobre o ensino público” foram produzidas no alvorecer da Primeira República” e referem-se, inclusive, a uma plano de organização do ensino secundário. Romero sugere mudanças para delimitação das matérias, sua distribuição e o método de ensino.
Sob o primeiro aspecto, o lagartense decreta o fim da orientação pendular desse ramo de ensino, entre o “clássico”  e o “realista”, por todo o tempo da monarquia. Ele defende a conciliação das duas propostas. Nesse arranjo – curso clássico + curso de ciências –, pasmem, a história não é referida como “matéria clássica e beletrista”, como as línguas e literaturas latina, nacional, francesa, inglesa e alemã. Ela é inserida na “parte científica” do currículo composto por saberes do grupo matemático, grupo físico-natural e do grupo histórico-sociológico.
A herança da classificação das ciências, de Herbert Spencer, é clara. Mas, a observação endógena de Romero, contrapondo-se às “pedagogices livrescas”, importadas dos Estados Unidos e da França, tem um preço. No seu plano, reduz-se o espaço para os estudos sobre a educação do adolescente, e o próprio Romero – para a nossa sorte – despreza a opinião do seu teórico, tanto sobre a insuficiência científica da história, quanto da inutilidade do seu ensino nas escolas britânicas (Cf. Spencer, 1901).
Alçada ao status de ciência, a história seria distribuída – no currículo e dentro da do plano da própria disciplina – segundo o critério da “complexidade crescente”, ou seja, da passagem do concreto para o abstrato. Isso significava a ocupação dos sexto e sétimo anos, sendo a história do Brasil ministrada apenas na última série do secundário.
A ausência da história nos cinco anos anteriores é debitaria da sua noção de psicologia. O ensino deveria respeitar o desenvolvimento natural – harmônico e progressivo – das faculdades espirituais (receptivas e concretas, abstratas e superiores). A história escolar seria, então, uma saber de síntese, consumível apenas durante a formação das “faculdades superiores”, necessitando, como as outras, da “assimilação” dos vários ramos das línguas e das ciências ensinadas anteriormente.
Certamente, a brevidade daquele ensaio não permite detalhes. No entanto, os recursos lingüísticos empregados para as prescrições são indiciários de uma importante característica da sua pedagogia: o professor como figura central nas tarefas de instrução no curso secundário.
Dessa pedagogia, da teoria das faculdades e da transposição didática – das ciências de referência para as disciplinas escolares – resultaria um método de ensino, grosso modo, muito similar ao estudo da “lógica das ciências”. Este, por sua vez, espelhava-se na “marcha natural do espírito humano, do concreto para o abstrato.” Proceder metodicamente pode ser entendido aí como “estudar os processos indutivos e depois os processos dedutivos.” (Romero, 1901, p. 216).
Quanto à história, o método a ser execrado seria aquele que se baseia em fatos históricos “mal contados, mal unidos, sem arte e sem sistema”, e sem a devida verificação científica. A sistematização dos fatos é requerida, mas o professor deveria afastar-se da “filosofia [especulativa] da história”.
Sobre os conteúdos, Romero prescreve: 1) História universal - os “elementos” e os “fatores mais poderosos”, respectivamente, da “cultura oriental antiga e moderna” e os da “cultura ocidental antiga e moderna” e “o contingente de cada povo na evolução universal”; 2) História do Brasil - “os fatores mais enérgicos de nossa cultura e de nosso desenvolvimento.” (Romero, p. 215-216, 1901).
Algumas propostas acima foram adotadas pela reforma Benjamim Constant. “Mas, não todas”, lamentou Romero (Cf. p. 211). Seria interessante investigar o que o positivista comtiano Benjamim incorporou do agora spencerino Romero. Mais importante, porém, seria saber o que o professor do Pedro II queria dizer com ensinar os fatos “relacionados com o ideal do conjunto da evolução humana: a cultura” (p. 125) e o que o professor de história do Brasil deveria adotar como história pátria. Seriam as criações fundamentais da humanidade – os fatos religiosos, estéticos, industriais, científicos, jurídicos, morais e políticos? (Cf. Romero, 1953, p. 372, v. 1; 1904, p. XVII). Seriam os fatos determinantes e o produto da nossa cultura, expressos em sua História da literatura (1888) – a natureza, as raças e os gêneros literários?
Mutatis mutandis, é o próprio Silvio Romero que, nos primeiros anos da República, vai escrever um livro didático sugestivamente intitulado História do Brasil pela biografia de seus heróis, encontrado às centenas nos almoxarifados da instrução pública para a distribuição nas republicaníssimas escolas públicas paulistas da década de 1890, quatro anos depois de ter escrito as “Notas sobre a instrução pública”. (Cf. Guimarães, 1895). Contradições? Não, apenas mais um flagrante daquela “imagem nervosa do país” (Candido, 1978, p. XII) no início do novo regime. O caráter nacional falava mais alto outra vez.

Para citar este texto
OLIVEIRA, Itamar Freitas de. Silvio Romero e a pedagogia da história. A Semana em Foco, Aracaju, p.6B-6B, 22 ago. 2004.<http://itamarfo.blogspot.com/2004/08/silvio-romero-e-pedagogia-da-historia.html>.

Referências 
BRUTER, Annie. Lavisse et la pédagogie de l’histoire. Histoire de l’Éducation, Paris, n. 65, p. 27-50, jan. 1995.
CANDIDO, Antonio. Introdução. In: Silvio Romero: teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1978.
GUIMARÃES, Artur César. Relatório da Diretoria Geral da Instrução Publica do Estado de São Paulo em 1894. (Anexos VI a XVII ao Relatório apresentado ao Sr. Presidente do Estado de São Paulo pelo Dr. Cesário Mota Júnior, Secretário de Estados dos Negócios do Interior, em 31 de março de 1895. São Paulo: Tipografia do Diário Oficial, 1895).
NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. A cultura ocultada. Londrina: Editora da UEL, 1999.
PAIM, Antonio. A filosofia da Escola do Recife. 2 ed. São Paulo: Convívio, 1981.
ROMERO, Silvio. Da crítica e sua exata definição. In: História da literatura brasileira. 5 ed. Rio de Janeiro: José Oympio, 1954.p. 347-377. v. 1.
ROMERO, Silvio. Fatores da literatura brasileira. In: História da literatura brasileira. 5 ed. Rio de Janeiro: José Oympio, 1954.p. 49-173. v. 1.
ROMERO, Silvio. Notas sobre o ensino público. In: Escritos de sociologia e literatura. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901. p. 127-216.
ROMERO, Silvio. Prefácio. In: BITENCOURT, Liberato. Ramos do saber. Classificação das ciências e de todos os ramos da atividade do saber. 4 ed. Rio de Janeiro: Tipografia do Ginásio 28 de Setembro, 1922. p. IX-XVIII. [Prefácio escrito em 1904].
SPENCER, Herbert. Classificação das ciências. São Paulo: Cultura Moderna, s. d.
SPENCER, Herbert. Educação intelectual, moral e física. Rio de Janeiro: Laemmert, 1901. 

domingo, 15 de agosto de 2004

Leituras sobre a história de Aracaju: Silvério Fontes

Como prometido na semana passada, aqui estou para comentar “A evolução de Aracaju”, texto de Silvério Fontes editado por Luiz Antônio Barreto na coletânea A formação do povo sergipano (Aracaju: Secretaria de Estado da Cultura, 2004).
O trabalho é uma conferência, fundada sobre fontes de segunda mão. Não vale pela apresentação de fatos novos ou documentos inéditos. Vale pela interpretação produzida sobre os clássicos relatos que tematizaram a história e a geografia de Aracaju.
O que é Aracaju para Silvério? – Ele responde: “Ela é minha cidade! Parte de meu sangue, dos meus olhos, de minhas recordações e emoções!”. Lembro daquela confissão de Sebrão sobrinho: “Estimo, bem-quero tanto a Aracaju que não sei si me sobejava coragem pra falar mal dela, ainda mesmo o merecendo.” (1955, p. 348). A diferença é que Silvério não se esforça para anunciar a imparcialidade do historiador, como fez o itabaianense. Ele não canta-lhe louvores, não é poeta. Também não define a vocação futura da cidade, não é político. Quer apenas compreendê-la. (cf. Fontes, 2004, p. 106)
Sim, mas o que é o objeto “Aracaju” para Silvério? É “um assunto central da história política, econômica e social de nosso Estado”, uma “unidade cívica em crescimento e em expansão relativamente às demais de Sergipe”. Para compreendê-la em sua “evolução global”, é necessário abandonar toda a periodização que não leva em conta a diversidade da experiência citadina – a um só lance, econômica, geográfica, política, educacional, etc. Disso decorre, talvez, a mais significativa contribuição do ensaio à historiografia sobre Aracaju: a divisão em cinco fases: 1. antecedentes ou pré-história da cidade – 1590/1852; 2. fundação – 1853/1856; 3. consolidação urbana – 1857/1899; 4. centralização regional – 1900/1935; 5. concentração regional – 1935/1973.
Cortada em fatias, Aracaju pode já ser compreendida, o que não significa dizer descrita, contemplada, comentada com isenção. “Compreensão” nesse ensaio é a atitude do historiador que tem ligação efetiva e afetiva com o seu objeto, nele estando imerso. É assim que eu “compreendo” as intrusões que atravessam o texto. Silvério dá lições de moral e ensaia explicação sobre os jogos da política no século XIX. Ele denuncia a incúria do prefeito Cleovansóstenes Aguiar com o arquivo municipal, a miopia político-administrativa de Pedro II, a pobreza da população e o conservadorismo da classe média aracajuana. Em suma, compreender para Silvério significa (também) aproximar-se e firmar posição.
Além da periodização e da atitude compreensiva sobre a “Evolução”, merecem registros, pelo menos, dois traços distintivos de Aracaju: o primeiro foi extraído da Corografia de Sergipe (1897): a capital, “como uma esponja, absorve a seiva dos núcleos populosos que lhe ficam perto.” A tese é validada para todo o período do século XX . O crescimento econômico e demográfico da capital – via fábricas de tecidos, ferrovia, estradas de rodagem, instituições escolares etc. – é proporcional à pauperização das cidades do interior do Estado. Um paradoxo.
O segundo elemento que demarca a identidade de Aracaju é o conflito entre a “mentalidade urbana” – da “classe média” e do “proletariado” local  – e a mentalidade das “forças tradicionais” do interior do Estado que a dominaram em toda a sua existência, “um grupo de famílias de proprietários de terras ou de industriais e comerciantes, que são também proprietários de terras”, que conservam valores de “sociedade agrícola arcaica e retrógrada”.
Silvério lamenta que a sua Aracaju nunca tenha participado “decisivamente na escolha do Governo Estadual”, apesar das tentativas lideradas pelo deputado Fausto Cardoso (1906) e pelo tenente Maynard Gomes (1924 e 1926). Deplora a aliança da classe média com os proprietários do interior. Anima-se com as possibilidades de mudança a partir do crescimento da indústria mineradora e da Universidade Federal de Sergipe, mas não quer indicar o papel da cidade “no novo panorama” que se esboça em 1973, pois “não é função do historiador responder. Pertence-lhe o mostrar ao político as tendências marcantes da evolução e sua problemática.” Tudo bem, professor... Faltava apenas um parágrafo para encerrar-se a conferência. As coisas já estavam ditas.
De 1973 até hoje, o conservadorismo das classes médias foi bastante matizado, embora o governo do Estado ainda seja uma prerrogativa das famílias do interior. Por outro lado, muitos problemas de pesquisa apontados por Silvério já ganharam bons desenvolvimentos, tais como: a Revolta Fausto Cardoso, o movimento tenentista, o abolicionismo de Francisco José Alves, os indígenas, a instrução pública e os trabalhos de geografia urbana (a abordagem geográfica tem grande peso no seu texto e não se sabe, ainda, se pela inexistência de trabalhos de historiadores sobre Aracaju pós-centenário ou se por conta das suas leituras braudelianas).
A grita sobre a desorganização das fontes arquivísticas também foi atendida. Muito do que ele precisava para enriquecer o seu ensaio está catalogado no Arquivo Estadual, no Instituto Histórico, na Cúria Metropolitana, no Arquivo do Judiciário, entre outros. Até mesmo a Prefeitura Municipal de Aracaju já disponibiliza a documentação que restou dos tempos de Cleovansóstenes de Aguiar em Arquivo público. Somente a pesquisa arqueológica, apesar de frondosa, não trouxe ainda “alguma luz” sobre o local da primeira Aracaju. Mas, ainda é tempo. O sesquicentenário da cidade só começa no próximo ano.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Leituras sobre a história de Aracaju: Silvério Fontes. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 15 ago. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 8 de agosto de 2004

Silvério Fontes outra vez

José Silvério Leite Fontes (1924-2005). Foto: Bruno Boss.
Junho e julho foram os meses de José Silvério Leite Fontes. No último dia sete, o mestre recebeu o título de sócio honorário do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, a instituição que ele ajudou a reerguer, após o afastamento do grande Epifânio Dória. Por sua condição de professor e historiador das coisas da terra, estimulou os alunos a associarem-se à Casa de Sergipe, transformando-a em um laboratório de pesquisas para o curso de Licenciatura em História da UFS nos idos da década de 1970. (Freitas, 2002, p. 18-19).
Três semanas antes da titulação no IHGS, outra homenagem fê-lo deslocar-se de sua residência até a Biblioteca Pública Estadual. Nesta ocasião, em feliz iniciativa da Secretaria do Estado da Cultura, lançou-se uma coletânea de seis ensaios da sua lavra, organizados e comentados por Luiz Antônio Barreto.
Qual a razão das homenagens? Por que motivo insiste-se tanto na lembrança deste professor, ausente do magistério há bem mais de uma década? Claro que Silvério é muito estimado por aqueles que desfrutaram do seu convívio. Estudiosos da filosofia, profissionais do Direito, sindicalistas militantes, gente do apostolado católico, todos têm motivos de sobra para festejá-lo. Mas, dentre os fatores que têm justificado esses atos de cortesia – quatro deles eu acompanhei de perto – ganha vulto a sua obra de historiador.
Silvério vivenciou momentos decisivos da re-configuração do ofício do historiador no Brasil. Esteve presente aos simpósios iniciais da Associação Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH); importou, divulgou e fez implantar, em Sergipe, as novas diretrizes teórico-metodológicas para a formação desse profissional. (cf. Oliva, 1998, p. 43).
Silvério lutou por um curso de pós-graduação na área, trouxe para Aracaju os grandes formadores de opinião, como Eurípedes Simões de Paula e José Honório Rodrigues. Além disso, colocou o Estado no mapa da renovação acadêmica, ajudando a organizar os Encontros de especialistas e empreendendo sistematicamente o levantamento e a organização de fontes. (cf. Oliva, 1998; Freitas, 2002).
Se, no final dos anos 1960, estar em dia com o debate acadêmico era citar os teóricos da terra de Marianne, é provável que a ausência de um francês como Jean Glénisson, nos quadros da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe, deixasse de representar um grande problema para a formação local: Silvério traduzia textos de Henry-Irinée Marrou, difundia Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel. Autores clássicos e modernos eram consumidos pelo douto sergipano que mantinha os olhos nas “alianças e apoios” estabelecidos pela segunda geração dos Annales sem, contudo, desviar o pensamento do axioma cartesiano, a dúvida metódica – na crítica histórica –codificada por Charles Victor Langlois e Charles Seignobos.
Muitos elementos desse parcimonioso ecletismo devem ter-se alojado, provavelmente, nos recônditos da memória de um ou outro aluno atento como Francisco José Alves, Terezinha Alves de Oliva e Ibarê Dantas. Os graus de apropriação, bem como os efeitos desencadeados nas referidas carreiras estão por serem descritos e avaliados pela história da historiografia. Entretanto, os resultados da sua francofilia em termos de escrita da história, flagrados nos textos sobre sociedade, política, e historiografia de Sergipe, podem agora ser apreciados com maior precisão a partir do lançamento da coletânea Formação do povo Sergipano (Aracaju: SEC, 2004).
Não considero um título feliz, pois nem todos, a exemplo do ensaio homônimo, tratam da formação do povo sergipano, ou seja, nem todos tentam “desvelar” as origens ou “o rosto do povo sergipano”, a consciência de sergipanidade e a “missão” de Sergipe diante da cultura nacional. Há história da historiografia, tanto em “Um projeto de história de Sergipe” – projeto coletivo para a elaboração de uma nova síntese da nossa história –, quanto no “Levantamento das fontes primárias da história de Sergipe”. Há história política, uma página sobre “Labatut em Sergipe”. Nesse texto, Silvério procura entender os motivos de alguns sergipanos terem se posicionado contra o general pacificador, a favor dos insurgentes de 1822, a favor da Bahia e, conseqüentemente, na contramão da autonomia local. Há, por fim, estudos sobre urbanidade, seja no aspecto da infraestrutura e das condições de vida – “Cidades e vilas de Sergipe no século XIX” –, seja na questão do confronto entre mentalidades urbanas e rurais – “A evolução de Aracaju”.
Sinto-me, por outro lado, incompetente para sugerir um outro título mais próximo das verdades dos ensaios. Sofro ao imaginar o trabalho do organizador para nomear a sua cria – (Que nome sintetizaria esses fragmentos da obra de Silvério? Por que não incluir o “Direito provincial sergipano”? etc., etc.). O livro em tela é obra de reescrita, isso basta. É trabalho de re-significação de textos produzidos em condições diversas e com objetivos vários. Talvez, nem o próprio autor acertasse na escolha do nome.
Agora é a minha vez de fazer penitência: imagine o leitor o problema que é comentar uma coletânea sem redundar no simplório resumo de cada peça ou na avaliação genérica sobre a importância de todos os escritos. Por isso, vou logo avisando que estenderei meus comentários por vários artigos, produzidos à medida que me sentir suficientemente preparado para a leitura de cada um deles. Na próxima semana, deter-me-ei, sobre “A evolução de Aracaju”, último texto desse livro, pronunciado como conferência no II Simpósio de História do Nordeste (Aracaju, 1973). Até breve.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Silvério Fontes outra vez. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 08 ago. 2004.


Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: <http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html>.


Fonte da imagem
José Silvério Leite Fontes (1924-2005). Foto: Bruno Boss < http://silveriofontes.com.br/index.html >.

domingo, 1 de agosto de 2004

Representações de Aracaju no livro de leitura "Nosso Brasil" (1948), de Luís Amaral Wagner

Os profissionais da educação do início do século XX foram os primeiros produtores do gênero literatura infantil. Traduzindo ou recriando, não tinham como preocupação central a dimensão estética, apesar das considerações lingüísticas e estilísticas presentes em suas obras. O intuito desses autores era, primordialmente, pedagógico. (Cf. Zilberman e Lajolo, 1993, p. 249-251). O valor daqueles primeiros exemplares intitulados “livros de leitura”, como os de Olavo Bilac e Manoel Bomfim (1910), residia nas finalidades, conteúdos e formas de exposição adequadas aos ensinamentos da escola primária, fosse ensino de padrão ou simplificado – ler, escrever e contar – ou enciclopédico – História, Geografia, Ciências físicas e naturais, Higiene, etc. (Cf. Bilac e Bomfim, 1931, p. V-VIII).
Na palavra autorizada de Bilac e Bomfim, um livro de leitura deveria constituir-se no “único” livro didático destinado ao primário, o que não significava compreendê-lo como uma coletânea de todos os saberes disponíveis para tal. O livro não poderia substituir o professor. É este “quem ensina”. É o professor “quem principalmente deve levar a criança a aprender por si mesma isto é, a pôr em contribuição todas as suas energias e capacidades naturais, de modo a adquirir os conhecimentos mediante um esforço próprio.”  Por outro lado, o livro não poderia ser apenas uma narrativa, deveria conter uma grande lição: “suscitar a coragem, harmonizar os esforços e cultivar a bondade: eis a fórmula da educação humana”. (idem).
Assim, inspirado na obra de Mme. Alfred Fouilée – Lê tour de la France par deux enfants (1877) – os autores narraram “a história da viagem de três adolescentes através do país, [dando] enredo para o conhecimento de paisagens, cidades, tipos humanos, gêneros de vida, formas de organização do espaço, modos de trabalho e vários outros dados sobre o Brasil” (Oliva, 2003, p. 33).  É disso que trata o Através do Brasil, de Bilac e Bomfim. Uma obra que fez escola. Esse e outros livros de leitura produzidos na primeira República transformaram-se em preciosas fontes senão para a história da educação, para a história cultural em sentido amplo, pois ao mesmo tempo em que auxiliavam o professor, sugerindo situações para o trato das disciplinas do primário, esses livros também mediavam a construção das imagens que os pequenos brasileiros faziam dos lugares outros do país e acerca dos seus irmãos coestaduanos.
Essa tarefa mediadora do livro de leitura despertou-me a curiosidade de conhecer o tipo de imagem a ser consumida pelos alunos sobre a cidade de Aracaju, às vésperas do seu primeiro centenário. A transcrição que se segue, um trecho de Nosso Brasil, de Luís Amaral Wagner (1948), depõe, por si mesma, acerca da importância do exame desse gênero literário na eventualidade de se querer produzir uma história de Aracaju a partir do olhar distante, do olhar de São Paulo e do Rio de Janeiro.
A cidade jardim
Aracaju, a capital do Estado de Sergipe, é um oásis esquecido do resto do Brasil. O seu porto só dá entrada a pequenos navios e em determinadas marés, e a via férrea que a serve é de uma lentidão insuportável.
No entanto, que bela cidade e que lindos jardins! Largas avenidas cortam-na em várias direções.
Os sergipanos têm orgulho da sua capital e com razão. Além de magnífico serviço de águas, a cidade possui bom serviço de higiene e belas instituições, como a Casa da Criança, modelar estabelecimento de ensino pré-escolar.
O porto é um canal largo, formado pela Ilha do Meio, que lhe fica defronte.
Os nossos viajantes embarcaram na estação de Calçada, e assim que chegaram a Aracaju foram de lancha visitar a ilha. Um imenso coqueiral a povoa. Ao vê-lo, o espectador tem a impressão de milhares de colunas com os seus capitéis de palmas. (Wagner, 1948, p. 82-91).
Encerrada a descrição da cidade, inicia-se o diálogo entre Dora e Luis e seu pai – entre duas crianças premiadas pelo desempenho nos estudos e o professor. Conversam sobre a cultura, o beneficiamento e a importância comercial do coco. Ao diálogo, seguem-se-lhes um pequeno vocabulário, noções e exercícios de gramática. Há também um momento de “recreação” – que fruta há em Aracaju? Ara [e afigura de um caju] –; um poema de autor sergipano: “Humildade”, extraído de Fonte da mata; e, por fim, um flagrante da cidade de Propriá:
Os elementos
Senhor Cláudio e os garotos tomaram o trem às treze horas, chegando à cidade de Propriá ao entardecer.
Propriá fica à margem do rio São Francisco. Àquela hora, o vasto lençol das águas refletia as cores cambiantes do ocaso. Com é largo o São Francisco nesse trecho!
Grandes canoas de vinte metros de comprimento, dotadas de amplas cabinas de palha trançada, viam-se abicadas no porto.
O pai dos meninos alugou uma das maiores, para navegar rio acima.
Na subida os canoeiros têm vento pela popa e desfraldam duas velas triangulares de cada lado do mastro central: isso dá ao barco a feição de uma imensa borboleta (Wagner, p. 89-90).
Pelas dosagens separadas de Geografia, Corografia, Gramática, Economia, Literatura e Ciências físicas, vê-se que o Luís Wagner não segue ao pé da letra o modelo de Através do Brasil. Mas não deixa de ser um depoimento sobre a imagem que se fazia de Sergipe na metade do século passado. O coqueiral, o tirador de coco, as canoas de tolda do São Francisco eram as principais representações visuais impressas nesses livros de leitura e quem sabe, os elementos mais significativos que foram retidos na mente dos demais escolares do Brasil sobre a terra de Hermes Fontes.

Para citar este texto
OLIVEIRA, Itamar Freitas de. Representações de Aracaju no livro de leitura "Nosso Brasil", de Luís Wagner Amaral. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 01, ago. 2004.<http://itamarfo.blogspot.com/2010/12/representacoes-de-aracaju-no-livro-de.html>.

Referências 
WAGNER, Luís Amaral. Nosso Brasil. (Para o 4º grau primário). 112 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, s. d.
OLIVA, Terezinha Alves de. Manoel Bomfim e os impressos sobre educação. Cadernos UFS – História da Educação. São Cristóvão, v. 5, fasc. 1, p. 27-33, 2003.
ZILBERMAN, Regina e LAJOLO, Marisa. Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira: histórias, autores e textos. 4 ed. São Paulo: Global, 1993.
BILAC, Olavo e BONFIM, Manuel. Advertência e explicação (de Através do Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1931. p. V-VIII e XII). In: ZILBERMAN, Regina e LAJOLO, Marisa. Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira: histórias, autores e textos. 4 ed. São Paulo: Global, 1993. p. 275-277.