domingo, 9 de maio de 2004

“Os anos dourados da Urbis Propriaensis"

Abençoada por Deus e bonita por natureza. Essa foi a sentença cunhada pelo ouvidor Antonio Pereira de Magalhães de Passos (1801) para convencer o governador da Bahia sobre a conveniência de a pequena povoação “Propriha” – nome de um riacho próximo – vir a ser ereta em vila. Boa situação geográfica – o relevo, o rio São Francisco –, bons ares (?) e bom clima fizeram-no vaticinar: é “a melhor para o comércio, que não decairá, porque parece que Deus Onipotente a destinou para fazer aos nacionais felizes, e ao Estado aumento”.
A profecia foi repetida pelo “memorialista do futuro”, D. Marcos Antônio de Souza em 1808 e transformada em realidade pelos ilustres proprieaenses, ao longo do século XIX e início do século XIX, quando o rio – a ferrovia, depois – e os frutos da terra, notadamente o algodão e o arroz, determinavam a prosperidade econômica da região.
Desde então, na historiografia, registrou-se a experiência dessa povoação/vila/cidade/comarca/município como uma linha ascendente, com ápice na primeira metade do século passado e brusca decadência a partir do final dos anos 1960.
A decadência, provavelmente, já fora notada pelo médico João Rodrigues da Costa Dória (1960), que a visitou em 1959, depois de meio século ausente. O cemitério e a praça Rodrigues Dória, em abandono. O Flor e Elisa, “maior e mais luxuoso hotel das margens do São Francisco”, deixando a desejar quanto à comodidade dos quartos e ao estado de janelas e banheiros. O rio São Francisco mais estreito, o porto entulhado de areia e terra – fatos que não o impediram de comentar: o lugar havia “progredido muito nestes últimos tempos” (nos 50 anos em que esteve fora?).
A prosperidade, enfim, encontrou o seu narrador na figura de outro Marcos, o Melo (1945/...), economista, advogado e administrador com passagens pelo primeiro escalão do governo do Estado. Não haveria melhor currículo para descrever o fausto da ribeirinha. Mas, propriamente falando, seriam os “anos dourados” da cidade ou da vida de seu narrador?
Ora, isso tem pouca importância para o escasso leitor das coisas sergipanas. Importa é saber que o livro Própria/mente falando, lançado no último abril, é, talvez, o maior inventário cultural sobre a história de uma cidade, produzido nos últimos anos. Os vinte e dois capítulos varrem a vida de Própria, da segunda metade dos anos 1940 ao início dos anos 1960, registrando as curiosidades e os grandes fatos relativos à centenas de pessoas que habitaram o imaginário da criança e do jovem Marcos Melo.
Lá estão os agentes – professores, professoras, boêmios, políticos, músicos, literatos, desportistas, familiares, padre, sargento do Exército; as instituições – Igreja, imprensa, Tiro de Guerra, partidos políticos; a descrição do traçado e da infra-estrutura da cidade. Também se registram os costumes privados – um domingo em família – e os costumes públicos – a missa, a procissão, a dança, a bebida, o cinema, o circo, a música veiculada nos auto-falantes (traços característicos de uma família de “classe média”).
A memória inicial é a do jovem propriaense, mas o filtro que atualiza as imagens é o do administrador e, mais ainda, do “jazzista” viajante. Os textos são atravessados por citações/comparações de cenas propriaenses com os clássicos do cinema e da música norte-americana, dando margem a algumas críticas sobre hábitos sergipenses do século XXI. No conjunto, não chega a ser saudosista. Entretanto, vence o patriota algumas vezes – a mais bonita, a mais alegre, a mais quente de Sergipe etc. São as marcas da caneta nativista e o veio autobiográfico do relato. Nesse sentido – no traço memorialístico stricto sensu –, o tipo social sintetizado no “incrível Rubens” (pena que não fosse propriaense) e o não menos incrível “Doutor Faninho” foram os meus capítulos preferidos.
Reconheço, porém, que nem tudo são memórias, apesar de o Marcos Melo anunciar-se como a principal fonte de informações do Propria/mente falando. Há trechos dissertados onde se ensaia alguma explicação sobre a decadência da cidade. Há elementos tributários do discurso histórico, pois se tem conhecimento dos antecedentes e dos conseqüentes dos anos dourados. Avalia-se e se atribui valores a determinados fatos, fazendo uso de alguma teoria, não obstante o aparente descompromisso acadêmico/literário. Na verdade, o livro não é nem memória, nem história e está dois passos adiante da crônica. O texto sobre a fantástica cosmogonia do visionário Mariú (1914), que escreveu Emblema do mar luminoso e Denoksuá, a síntese sobre “política e políticos” e a descrição das atividades produtivas do município dão mostras desse outro lado (híbrido) da escritura.
A importância da obra já foi bem assinalada pelo prefaciador. Escreve Luiz Eduardo de Magalhães que a “coletânea” proporciona prazer na leitura, conserva a experiência de pessoas-chave na vida de pequenas comunidades e fortalece a auto-estima do propriaense. Mas, o livro é também um detalhado repositório de dados sobre a cultura de uma cidade não circunscrita à esfera de influência de Aracaju. Isso alarga as possibilidades de estudos sobre outras cidades e até mesmo sobre as futuras sínteses de história de Sergipe.
Resta apenas lamentar que o Marcos Melo não se tenha “aposentado completamente” para – com a experiência de administrador dos negócios do Estado – ensaiar uma história de Própria, exumando esse tão malfadado período de decadência do lugar. Mas, será que não encontraremos nesse novo período um outro tempo dourado para a geração nascida a partir dos anos 1960? Esperemos a história.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Os anos dourados da Urbis Propriaensis. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 09 maio 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

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