domingo, 11 de abril de 2004

O hiper texto de Fernando Porto

Há quase cinqüenta anos, “A cidade do Aracaju” era tomada por Fernando Porto como um artefato mediado pelo relevo do lugar, pelo projeto de Sebastião Basílio Pirro e pelas obras iniciais de urbanização. O interesse geo-histórico do engenheiro-escritor ligava-se ao reconhecimento de que a cidade necessitava de um “plano regulador” do seu crescimento, serviço para o qual o saber de Clio teria muito a contribuir. Hoje, às vésperas do 150o aniversário, Aracaju possui um Plano Diretor, o engenheiro da Prefeitura já está aposentado e a historiografia sobre a cidade vai se reproduzindo em escala progressiva, o que me força a questionar: que interesses teriam movido Fernando Porto nesse novo livro, lançado em 2003?
O título diz muito: “Alguns nomes antigos do Aracaju” (Funcaju, 2003). A preocupação anunciada é com a memória, ou melhor, com o apagamento da memória. Por que o aracajuano esquece tão rapidamente os nomes dos lugares e logradouros de sua cidade? Fernando Porto responde: por causa da ação desrespeitosa do Estado (trocando nomes de apelo popular por homenagens circunstanciais a personalidades de valor discutível) e por conta da mobilidade populacional (as pessoas mudam-se dos bairros e os nomes deixam de ser pronunciados).
Efetivamente, é isso que ele faz. As duzentas e cinco páginas do livro condensam informações valiosas sobre o sentido etimológico, a origem e as modificações dos nomes de ruas, becos, travessas, avenidas, praças, bairros e recantos de Aracaju. Há também descrições de edifícios e histórias que envolvem os moradores desses lugares, num período que abrange desde o 1855 até a década de 1990.
Mas, eu arriscaria dizer que essa obra oferece muito mais que um inventário de nomes e seus significados. Fernando Porto não quis fazer dicionário, pois resultaria em livro “árido, monótono, de restrita curiosidade” (p. 11). – Também não quis escrever suas memórias nem contar, monograficamente, a história da arquitetura em Aracaju, nem a crítica dos costumes contemporâneos, nem a história de tipos populares ou da subserviência da política local. Preferiu “compilar” o “grande número de anotações” autógrafas sobre os locais averbetados “a fim de tornar o relato mais atraente” (p. 11). – Preferiu enredar os retalhos de uma vida de estudante em Aracaju, de engenheiro da PMA, de professor de geografia, de leitor de história da arte, etc.. O resultado foi um texto, melhor dizendo, um hiper-texto onde os títulos dos verbetes são desprezíveis diante da variedade de temas e conexões oferecidas para a leitura.
No livro só faltam os sons. Fotografias, são mais de quarenta, flagrando, por exemplo, o ambiente da travessa Deusdédite Fontes nos anos 1920 (p. 15), o prédio da Câmara de Vereadores, no final do século XIX (p. 28), o Alto de Areia e o morro do Bomfim, em 1923 e a “feira da colônia”, situada em frente à Casa Fonseca, há quase cem anos.
É pensando dessa forma que se pode compreender o desequilíbrio de tamanhos, ritmos e tempos entre os verbetes. Onde abundaram as fontes e as notas, rendeu a escritura. “Rua do Angelim” (p. 19-56) dá mostras desse formato hiper-textual. Inicia-se com dados sobre a abertura da via, o significado do nome e o primeiro empreendedor – Adolfo Rollemberg. Seguem-se a chegada do engenheiro/arquiteto Altenesch em Aracaju e as mudanças introduzidas na paisagem arquitetônica da cidade pelos artistas italianos e alemães. O leitor até esquece de que se está a tratar da “rua do Angelim”.
Nos demais verbetes, “as anotações” empregadas para tornar o relato “mais atraente” vão abrindo frentes de leitura sobre a história da cidade: é o trabalho dos empreendedores – barão de Maruim, Juca Barreto, Mariano Salmeron –, o velho hábito de tomar caldo-de-cana, a introdução de novas práticas de consumo – a macarronada, lâminas de barbear Gillette, o futebol –, o ethos do sergipano – inatamente desorganizado –, o traço dominante da burocracia local – impotente par “cortar os erros em seu nascedouro”.
É assim o hiper-texto de Fernando Porto. Entra-se por uma porta e dá-se de frente com várias outras. A experiência da cidade vai se derramando por entre vários lugares referenciados, saltando as décadas e personagens. A história de Aracaju é sorvida em goles de anúncios de jornal, de requerimentos para a construção de casas, de reminiscências, de diálogos com outros historiadores.
Há, porém, um inconveniente nesse modo de produção. Como os verbetes resultam de síntese, a proveniência das fontes é omitida e o noviço não tem muitos instrumentos para diferenciar o que é tributário à memória de Fernando Porto ou às suas notas bibliográficas e arquivísticas. Sem crítica textual futura, é possível que “alguns nomes antigos do Aracaju” sejam sacralizados por conta da palavra autorizada desse grande aracajuanófilo que é Fernando Porto. E o mais curioso: é bem provável que o seu depoimento, paradoxalmente, acabe soterrando outros “nomes antigos do Aracaju”.
Para encerrar, uma informação que considero muito importante sobre a identidade da capital. No livro de 1945, Fernando Porto apenas supunha a localização do rio Aracaju. Em 2003, ele foi afirmativo: “O rio Aracaju, que deu nome à região, desembocava no rio Sergipe, ao lado da fábrica Sergipe Industrial, daí dirigia o seu curso, inicialmente, para o poente e a certa altura infletia para o noroeste, em direção ao vale do Engenho Velho, nas proximidades do Manoel Preto.” (p. 61). Ainda insisto que o referido rio merece uma placa indicativa nesses próximos meses em que a cidade completará o seu 150o aniversário.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O hiper texto de Fernando Porto. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 11 abr. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

Nenhum comentário:

Postar um comentário