domingo, 8 de fevereiro de 2004

A República de Curvello de Mendonça

Sergipe republicano e histórico: estudo crítico e histórico é o título da obra de Manoel Curvello de Mendonça (1870/1914). Lançada no clímax da Guerra de Canudos, em 1896, quando a jovem República brasileira passava pelos primeiros testes, frente às tentativas de retorno da monarquia, o livro amplia a compreensão sobre o ethos e a origem do sergipano, mas, sobretudo, “dialoga” com A República em Sergipe (1891), de Balthazar Góis – de fato, um reparo de teses e de método.
Trata das “causas” e “efeitos” do decréscimo da população sergipana, da repercussão das lutas pernambucanas de 1817 e 1824 em Sergipe, da autonomia local em relação à Bahia, das idéias republicanas em Estância, Japaratuba, Itaporanga, Própria e Laranjeiras – com destaques, nesta última, para a ação de Guedes Cabral, Josino de Menezes e Felisbelo Freire e para a influência do ensino de história e do ensino secundário em geral na formação do espírito democrático.
Na obra, a monarquia era um grande mal a ser superado teleologicamente, a Bahia uma “cruel vizinha”, e a República, essa chama que oscila por todo o século XIX, e não apenas há dois anos da Proclamação, como afirmara Balthazar Góis.
No afã da correção – Curvello corrige Góis e mesmo a Felisbelo Freire – comete deslizes. Afirma, por exemplo, que o 24 de outubro de 1820 corresponde à data de nomeação do “magnânimo” Governador Burlamaque, de quem o povo sergipano guardou as tradições [republicanas] de liberdade e de moralidade administrativa. Mas, louve-se o estilo didático empregado.
No que se refere ao método propriamente dito, Curvello preferiu descrever “as idéias e os fatos, com as suas origens, as suas causas, as suas ligações e as suas conseqüências” em lugar do acúmulo “dos nomes sobre nomes de indivíduos”. Numa frase: abandonou “o método de historiar por biografias”, dominante no trabalho do conterrâneo Balthazar Góis. (Curvello, 1986, p. 1-2, 43-44, 163).
Apesar da imparcialidade e a impessoalidade anunciadas, reconhece o laranjeirense que não há como negar o papel do indivíduo nessa história republicana. A ação do farmacêutico Josino Menezes, fundando os jornais Laranjeirense e Republicano é digna de registro, “sem prejuízo da orientação geral” do seu livro. (idem, p. 125).
Curvello também procurou denunciar o “inocente cuidado” dos servidores da monarquia em destruir os documentos relativos à atividade dos republicanos. E quando não há documentos, mesmo os tendenciosos, nada se pode inferir, conclui o historiador. (Cf. p. 95-99).
Do reparo de método segue Curvello ao reparo de tese. O livro foi produzido, especificamente, para rebater a informação de que a propaganda republicana em Sergipe teria se manifestado somente dois anos antes do 15 de novembro de 1889. (Cf. p. 8, 43-44). Como Balthazar não fez pesquisa histórica, “esquecendo-se talvez que nada existe sem antecedentes” – a conjuração mineira, República de Piratini, revoluções pernambucanas –, ele apenas narrou a “última fase do movimento”, referente à ação dos abolicionistas de Laranjeiras. Pode-se dizer que ele teria feito tão somente, a crônica do seu tempo, em torno dos homens de ação.
Mas, releve-se ainda a reprimenda que o Curvello aplica ao trabalho de Balthazar no que diz respeito  ao papel da “classe agrícola” na queda da monarquia, situação conhecida por experiência pessoal e observação direta. Curvello era neto de Manoel Curvello de Mendonça – provavelmente o homem mais rico de Sergipe até o início dos anos 1860. Era filho e sobrinho dos tutores dessa herança – Ricardo e Antônio Curvello de Mendonça –, construída a partir da plantação de cana, produção de açúcar, comércio, e serviços de empréstimo de dinheiro. (Cf. Resende, 2003, p. 89-97).
Foi partindo dessa familiaridade com a classe que o autor do Sergipe republicano desautorizou o ex-professor Balthazar ao afirma que os agricultores não hostilizaram a campanha abolicionista e não abandonaram a monarquia por não terem recebido indenização do governo.
Na verdade, afirma Curvello, grandes proprietários haviam abolido o cativeiro negro muitos anos antes de 1889. Por conseguinte, tentavam implantar o trabalho livre, independentemente das reformas do Estado. O próprio Ricardo Curvello Tentara adotar o assalariamento, enfrentando a escassez de braços, pois ninguém queria sujeitar-se ao trabalho nos engenhos. “Havia uma espécie de repugnância em desempenhar misteres que por toda a parte em redor eram confiados aos escravos.” (Curvello, 1896, p. 60).
Não só o teor progressista da classe agrícola é ressaltado. Também o seu caráter paternal e “benevolente” em relação à escravatura ganha corpo na argumentação de que o professor Balthazar Góis fora injusto com os proprietários rurais. Para Curvello, “os escravos sergipanos passavam uma vida relativamente suave, parecendo mais um prolongamento sui generis da família.” (idem, p. 55). Esse comportamento acompanhava apenas a tônica geral, haja vista que “a escravidão no Brasil não adquiriu o aspecto de ferocidade humana, como sucedeu no seio de outros povos”. (idem, p. 54).
Por esses comentários, portanto, vê-se que O Sergipe republicano de Manuel Curvello é um oportuno depoimento sobre debates de ciência e política. É a escrita da história produzida a partir da perspectiva de um intelectual egresso da família proprietária decadente, que segue de perto a tarefa inaugurada por Felisbelo Freire, de flagrar regularidades e tornar científica a história, fazendo desse saber um instrumento auxiliar na tarefa de refinar os costumes, de civilizar a nação. Merece ser lido pelos interessados na “regeneração” ou na “purificação” dos costumes republicanos, na transição trabalho escravo-trabalho livre e a na construção da memória sobre a escravidão no Brasil.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A República de Curvello de Mendonça. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 08 fev. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

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