domingo, 23 de novembro de 2003

Da Bahia a Pernambuco

Era quase um martírio. Andar descalço pela lama do mangue ou na escuridão da floresta, acossado por índios ou por fugitivos da justiça; atravessar quarenta rios, comer farinha pura, andar cerca de 600 km numa viagem que poderia durar até 90 dias. Esse foi o cotidiano de parte dos coloniais que transitaram entre as capitanias mais prósperas do Brasil – Bahia e Pernambuco – há mais de 400 anos.
No meio do percurso, Sergipe, ou melhor, uma faixa de terra e mar, circunscrita entre os rios Itapoã e São Francisco. Quem morava nesse meio termo, ou nesse fim de mundo? Porcos-do-mato, antas, maracajás, gado, índios.Assim pensavam alguns cronistas holandeses no século XVII. Felisbelo Freire desconfiou dessa pobre representação. Ivo do Prado e Maria Thétis Nunes também. Em 120 anos de historiografia local, o conhecimento sobre a colônia já recuou até o século XVI, precisamente ao ano de 1501. Foi nessa data que os primeiros “sergipanos” índios emigraram para a Europa. (cf. Nunes, 1989 p. 17).
Com o Grupo de Estudos em História de Sergipe Colonial, coordenado pelo professor Francisco José Alves, a tendência é desvelar cada vez mais esses tempos longínquos. O primeiro fruto do Grupo em livro foi editado em [setembro] último, numa parceria entre o Serviço Social do Comércio e o Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe. Intitula-se Da Bahia a Pernambuco: viagens entre dois pólos da colonização do Brasil. Em cem páginas, Pedro Abelardo de Santana, o autor, conta um pouco da aventura branca, vivenciada nessa parte da América Portuguesa, no século de Cabral.
O que vinham fazer esses viajantes nessa terra de ninguém? Queriam o pau-brasil; queriam índios para tocar a parte suja da empresa; queriam ganhar almas para Deus. Hoje, é bem difícil hierarquizar as motivações da conquista – ou do descobrimento, ou do genocídio.... Mas, é possível e oportuno exercitar a nossa atitude compreensiva diante do bizarro “espetáculo do crescimento” da colônia lusitana. É isso, também, que o livro de Pedro Abelardo nos propicia, notadamente em seu segundo capítulo – no primeiro, faz-se a contextualização das viagens por meio de um esboço das condições materiais das povoações mais destacadas.
Como tratar das viagens sem transformar a história em compilação das crônicas coloniais? A solução do autor é simples: estender as cartas e relatos por sobre a mesa e aplicar-lhes o mesmo questionário: finalidades, roteiros, duração, meios de transporte, e maiores dificuldades encontradas nos itinerários.
E a teoria interpretativa stricto sensu? É desnecessária. Não esqueçam: é uma mo-no-gra-fi-a de aluno de graduação. Selecionar um conjunto de fontes relacionáveis, aplicar um interrogatório e extrair algum sentido, já é bastante significativo para o trabalho acadêmico nesse estágio da carreira.
E quais os sentidos extraídos que podem enriquecer o conhecimento sobre o passado sergipano, sobretudo? Um dos trunfos do livro está implícito na forma de enredamento. Claro que não era o objetivo do autor tratar de um marco de origem da sociedade sergipense. Mas, como escrevemos e aprendemos história por imagens (a lição é do século XIX), não posso omitir a constatação de que, com esse texto, ficou mais fácil entender o processo de ocupação dessa terra de “porcos-espinhos, antas e maracajás”.
O que ocorre nas últimas três décadas do século XVI, anuncia a obra, é um movimento crescente de tropas, aventureiros, religiosos, orientando a história desse lugar para um certo clímax: a deflagração do processo civilizatório por parte da população branca. Jesuítas, militares, paisanos legalizados e aventureiros, partindo sempre de Olinda e da Bahia, por mar e por terra; corsários entrando pelo leste; índios em perseguição aos portugueses no sentido oeste-leste e na direção norte-sul; índios em fuga no sentido oeste-leste (litoral-interior).
Todas essas experiências, dispostas sincronicamente, oferecem uma visão diferente daquelas que os (poucos) estudantes de história de Sergipe estão habituados a construir: a imagem de que a “certidão de nascimento” do Estado foi registrada por etapas – primeiro a conquista religiosa (pacífica!), depois a conquista militar (sanguinolenta) e, por fim, a ocupação paisana (econômica) provida pelos grandes criadores de gado.
A publicação da monografia de Pedro Abelardo de Santana conjuga três boas novas. A primeira é o lançamento de um nome promissor para os estudos históricos sobre o tema. Como disse um conhecido sergipanófilo, é bem difícil produzir sentido sobre a fragmentariedade das fontes do período colonial. E o autor conseguiu.
Destaque-se também a materialização do prêmio “José Silvério Leite Fontes”, feliz iniciativa do DHI/UFS. O texto de Abelardo venceu a primeira edição desse certame, depois de renhida disputa com a monografia Formação do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Itabaiana, de Ângela Barros,  orientada pelo professor Fernando Sá.
A última boa nova é a demonstração dos frutos da pesquisa especializada e tutelada dentro do DHI, como registra o próprio Abelardo na sessão de agradecimentos: ao “professor Francisco... que me ofereceu o tema dessa monografia.” Venho falando aos quatro cantos que uma possibilidade para produzir massa crítica sobre a história do Estado é a tutela, não só dos temas, mas, especialmente, dos problemas de pesquisa. E mais, que esses temas e problemas tenham relação direta com o foco de interesse dos professores-orientadores. Aí está o resultado.
Da publicação, apenas algumas notas destoantes: concordo com Samuel Albuquerque que um mapa e um glossário aumentariam o valor da obra. Mas, o que desafina, no momento, é a deficiente circulação dos 500 exemplares impressos, embora os interessados em comprar o livro – eu indico a leitura – possam facilmente fazer contato com o autor. Ele é o diretor do Arquivo Público da Cidade de Aracaju.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Da Bahia a Pernambuco. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 23 nov. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumario desta obra
http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >

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