domingo, 26 de outubro de 2003

Os pés-de-anjo na historiografia da educação

Detalhe da capa de Pé-de-anjo e letreiros de neonginasianos na Aracaju
dos anos dourados, de Tereza Cristina da Graça, produzida por
Claudio Silveira (2002).
Está, nas livrarias, a primeira safra da historiografia da educação produzida pelo Mestrado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Pés-de-anjo e letreiros de néon: ginasianos na Aracaju dos anos dourados (Editora da UFS, 2002) é o primeiro de uma série de trabalhos monográficos que deve dar muito o que falar entre os consumidores das letras sergipanas.
Respirando os ares da nova História cultural, Tereza Cristina Cerqueira da Graça – a autora – quis experimentar na forma de expor e, concomitantemente, livrar-se dos ditames do método crítico e da missão salvífica reservada à ciência da História nos anos 1980. O resultado? Um pé fincado no novo e outro no velho, como costuma ocorrer com historiadores que ousam livrar-se da escrita histórica dogmática.
O velho – aqui entendido como costumeiro e dominante, forma requerida de buscar o passado – pode ser verificado, por exemplo, no esforço da autora em “reconstituir cenários”. Tereza Cristina emprega depoimentos de alunos de seis escolas: Rui Barbosa, Atheneu, Industrial, Nossa Senhora de Lourdes, Jackson de Figueiredo Tobias Barreto e, por intermédio desses, principalmente, registra “o cotidiano dos ginasianos no interior e no ‘entorno’ da escola, resgatando aspectos da vida material, afetiva, relacional e simbólica, desde a preparação para os exames de admissão até as festas de formatura” (p. 56).
Nesse meio tempo, até mesmo o leitor, não identificado com a experiência escolar stricto sensu, ver-se-á seduzido pelas pinceladas sobre os transportes, os costumes públicos e privados, os espaços de sociabilidade e o consumo de bens culturais na cidade; os de maior proximidade com a temática deverão usufruir da ressurreição imagética da experiência dos escolares aracajuanos dos anos 1950.
O outro pé-de-anjo – no sentido de leve, sutil, tateante e ingênuo – foi fincado nos canteiros experimentais da historiografia da educação brasileira. Sob o ponto de vista teórico-metodológico, a escrita da História, produzida pelos profissionais da educação, desembarcou dos vagões althusserianos (anos 1970 – a escola como aparelho ideológico de Estado) e gramscianos (anos 1980 – a escola e os intelectuais como sujeitos ativos na construção da nova ordem), e comprou bilhetes para a classe da nova História cultural, nos  anos 1990, com seus novos objetos e abordagens, marcadamente franceses (cf. Warde, 2003).
Em Sergipe, nada de estações, trens e vagões; muito a fazer em termos de historiografia da educação (Carvalho, 2001). Assim mesmo, sofremos o influxo das “viagens pedagógicas” do final do século XX. Os migrantes temporários, alunos sergipanos de mestrado e doutorado, acabaram promovendo mudanças na escrita local, um quase reflexo do itinerário “conceitual e metodológico”, vivenciado pelos centros formadores de opinião, como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Desse caldeirão de intenções e enfrentamentos, em torno e no centro do campo educacional, o livro de Tereza Cristina pode ser tipificado como fruto.
Tereza Cristina Cerqueira da Graça
Historiadora e Pedagoga.
O esforço da autora é triplo: abandonar a seqüência hipótese-descrição-prova, livrar-se do viés ideológico (ideologia como falsa consciência) e encontrar um limite aceitável para o emprego das “viagens” memorialísticas dos colaboradores e de si própria. A manutenção das revisões de literatura sobre cidade, cultura e escola; as explicações acerca da construção do objeto; a discussão sobre juventude, cultura e educação, originárias do formato dissertação (ao meu ver, dispensáveis no livro), representam indícios dessa “era das incertezas” metodológicas e epistemológicas.
Mas, o experimento do novo lá está: um novo corpo de fontes, um acervo de novos objetos – a trivialidade cotidiana (o namoro, a hora da merenda, a gazeta escolar), o demarcador do tempo social (o uso do primeiro absorvente íntimo, o exame de admissão, a solenidade do sete de setembro, a festa de formatura); um novo naipe teórico (Elias, Foucault, Chartier); e uma nova visão sobre a natureza da instituição escolar: não mais um espaço de reprodução da ideologia da classe dominante, mas um lugar de resistência, e mais ainda, um lugar de trocas, empréstimos e filtros.
A publicação de Os pés-de-anjo transmitiu-me uma sensação de todo vice-campeão, aquele que quase põe a mão na taça. E por que isso? Porque a historiadora tocou num monte de pedras grandes (cultura, cidade, práticas escolares, narrativa etc.) e não colheu os louros que lhe caberiam, caso o livro fosse publicado há, pelo menos, quatro anos.
Quando a autora cursou o mestrado, o rol de insatisfações com a escrita histórica sobre a educação era extenso e as propostas de mudança rareavam. Mas, Tereza Cristina apontou algumas direções e isso, provavelmente (se editada em “tempo certo”), teria feito da obra uma referência no que diz respeito às possibilidades de aliar conhecimento sobre o campo educacional à experiência renovada (em torno do cultural) dos historiadores por formação inicial.
Hoje, a relação entre escola e cultura (em perspectiva histórica), especificamente a temática da “cultura escolar”, não é dominante, mas já constitui o maior pólo de interesses se contabilizarmos o movimento expresso pelos trabalhos do II Congresso Brasileiro de História da Educação: foram oito dezenas entre as mais de quatrocentas comunicações inscritas em 2002.
Para o regozijo dos nativistas, a comunidade de historiadores da educação não produziu consensos temporários sobre a relação cultura-escola mediada pela História cultural, seja esta francesa, inglesa ou norte-americana, marxista ou foucaultiana. Ainda que as tendências manifestadas no Congresso não lembrassem os elementos da proposta etnográfica de Tereza Cristina, poderíamos considerar os Pés-de-anjo, desde já, como um marco nas práticas historiadoras do objeto educação em Sergipe. Uma obra que deve ser consumida pelos estudiosos da educação e pelos degustadores da História de Aracaju.


Fontes das imagens
Tereza Cristina Cerqueira da Graça. <http://ultimosegundo.ig.com.br>. Acesso em: 28 nov. 2010.
Detalhe da capa de Pé-de-anjo e letreiros de neonginasianos na Aracaju dos anos dourados, produzida por Claudio Silveira (2002). Foto: Itamar Freitas, nov. 2010. 


Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Os pés de anjo na historiografia da educação. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 26 out. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

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