domingo, 26 de outubro de 2003

Os pés-de-anjo na historiografia da educação

Detalhe da capa de Pé-de-anjo e letreiros de neonginasianos na Aracaju
dos anos dourados, de Tereza Cristina da Graça, produzida por
Claudio Silveira (2002).
Está, nas livrarias, a primeira safra da historiografia da educação produzida pelo Mestrado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Pés-de-anjo e letreiros de néon: ginasianos na Aracaju dos anos dourados (Editora da UFS, 2002) é o primeiro de uma série de trabalhos monográficos que deve dar muito o que falar entre os consumidores das letras sergipanas.
Respirando os ares da nova História cultural, Tereza Cristina Cerqueira da Graça – a autora – quis experimentar na forma de expor e, concomitantemente, livrar-se dos ditames do método crítico e da missão salvífica reservada à ciência da História nos anos 1980. O resultado? Um pé fincado no novo e outro no velho, como costuma ocorrer com historiadores que ousam livrar-se da escrita histórica dogmática.
O velho – aqui entendido como costumeiro e dominante, forma requerida de buscar o passado – pode ser verificado, por exemplo, no esforço da autora em “reconstituir cenários”. Tereza Cristina emprega depoimentos de alunos de seis escolas: Rui Barbosa, Atheneu, Industrial, Nossa Senhora de Lourdes, Jackson de Figueiredo Tobias Barreto e, por intermédio desses, principalmente, registra “o cotidiano dos ginasianos no interior e no ‘entorno’ da escola, resgatando aspectos da vida material, afetiva, relacional e simbólica, desde a preparação para os exames de admissão até as festas de formatura” (p. 56).
Nesse meio tempo, até mesmo o leitor, não identificado com a experiência escolar stricto sensu, ver-se-á seduzido pelas pinceladas sobre os transportes, os costumes públicos e privados, os espaços de sociabilidade e o consumo de bens culturais na cidade; os de maior proximidade com a temática deverão usufruir da ressurreição imagética da experiência dos escolares aracajuanos dos anos 1950.
O outro pé-de-anjo – no sentido de leve, sutil, tateante e ingênuo – foi fincado nos canteiros experimentais da historiografia da educação brasileira. Sob o ponto de vista teórico-metodológico, a escrita da História, produzida pelos profissionais da educação, desembarcou dos vagões althusserianos (anos 1970 – a escola como aparelho ideológico de Estado) e gramscianos (anos 1980 – a escola e os intelectuais como sujeitos ativos na construção da nova ordem), e comprou bilhetes para a classe da nova História cultural, nos  anos 1990, com seus novos objetos e abordagens, marcadamente franceses (cf. Warde, 2003).
Em Sergipe, nada de estações, trens e vagões; muito a fazer em termos de historiografia da educação (Carvalho, 2001). Assim mesmo, sofremos o influxo das “viagens pedagógicas” do final do século XX. Os migrantes temporários, alunos sergipanos de mestrado e doutorado, acabaram promovendo mudanças na escrita local, um quase reflexo do itinerário “conceitual e metodológico”, vivenciado pelos centros formadores de opinião, como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Desse caldeirão de intenções e enfrentamentos, em torno e no centro do campo educacional, o livro de Tereza Cristina pode ser tipificado como fruto.
Tereza Cristina Cerqueira da Graça
Historiadora e Pedagoga.
O esforço da autora é triplo: abandonar a seqüência hipótese-descrição-prova, livrar-se do viés ideológico (ideologia como falsa consciência) e encontrar um limite aceitável para o emprego das “viagens” memorialísticas dos colaboradores e de si própria. A manutenção das revisões de literatura sobre cidade, cultura e escola; as explicações acerca da construção do objeto; a discussão sobre juventude, cultura e educação, originárias do formato dissertação (ao meu ver, dispensáveis no livro), representam indícios dessa “era das incertezas” metodológicas e epistemológicas.
Mas, o experimento do novo lá está: um novo corpo de fontes, um acervo de novos objetos – a trivialidade cotidiana (o namoro, a hora da merenda, a gazeta escolar), o demarcador do tempo social (o uso do primeiro absorvente íntimo, o exame de admissão, a solenidade do sete de setembro, a festa de formatura); um novo naipe teórico (Elias, Foucault, Chartier); e uma nova visão sobre a natureza da instituição escolar: não mais um espaço de reprodução da ideologia da classe dominante, mas um lugar de resistência, e mais ainda, um lugar de trocas, empréstimos e filtros.
A publicação de Os pés-de-anjo transmitiu-me uma sensação de todo vice-campeão, aquele que quase põe a mão na taça. E por que isso? Porque a historiadora tocou num monte de pedras grandes (cultura, cidade, práticas escolares, narrativa etc.) e não colheu os louros que lhe caberiam, caso o livro fosse publicado há, pelo menos, quatro anos.
Quando a autora cursou o mestrado, o rol de insatisfações com a escrita histórica sobre a educação era extenso e as propostas de mudança rareavam. Mas, Tereza Cristina apontou algumas direções e isso, provavelmente (se editada em “tempo certo”), teria feito da obra uma referência no que diz respeito às possibilidades de aliar conhecimento sobre o campo educacional à experiência renovada (em torno do cultural) dos historiadores por formação inicial.
Hoje, a relação entre escola e cultura (em perspectiva histórica), especificamente a temática da “cultura escolar”, não é dominante, mas já constitui o maior pólo de interesses se contabilizarmos o movimento expresso pelos trabalhos do II Congresso Brasileiro de História da Educação: foram oito dezenas entre as mais de quatrocentas comunicações inscritas em 2002.
Para o regozijo dos nativistas, a comunidade de historiadores da educação não produziu consensos temporários sobre a relação cultura-escola mediada pela História cultural, seja esta francesa, inglesa ou norte-americana, marxista ou foucaultiana. Ainda que as tendências manifestadas no Congresso não lembrassem os elementos da proposta etnográfica de Tereza Cristina, poderíamos considerar os Pés-de-anjo, desde já, como um marco nas práticas historiadoras do objeto educação em Sergipe. Uma obra que deve ser consumida pelos estudiosos da educação e pelos degustadores da História de Aracaju.


Fontes das imagens
Tereza Cristina Cerqueira da Graça. <http://ultimosegundo.ig.com.br>. Acesso em: 28 nov. 2010.
Detalhe da capa de Pé-de-anjo e letreiros de neonginasianos na Aracaju dos anos dourados, produzida por Claudio Silveira (2002). Foto: Itamar Freitas, nov. 2010. 


Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Os pés de anjo na historiografia da educação. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 26 out. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 19 de outubro de 2003

O ensino agrícola em Sergipe

Comemorou-se, em 2002, o centenário da inauguração da Escola Agrícola Salesiana São José (19/03/1902), primeira obra dos “filhos de D. Bosco” em terras sergipenses. A instituição abrigava aprendizes – meninos órfãos pobres – e pensionistas, filhos de abastados, que passavam o dia entre as oficinas de artífices, o aprendizado agrícola, e o ensino de disciplinas correlatas ao primário e secundário da época. (Cf. Silva, 2000, p. 302-310). Ocorre que a benemérita instituição nascera em meio às rotineiras disputas científicas, religiosas, da primeira década do século XX, não estando imune às refregas da política.
Os primeiros debates centraram-se sobre a ação do Estado na efetivação do empreendimento e sobre os modos como os patrimônios do então presidente Olímpio Campos e da ordem salesiana em Sergipe foram construídos. Tebaida era palavra incômoda nos primeiros meses de 1902. Nomeava um sítio de 140 hectares, banhado pelos rios Pitanga e Poxim, encravado no município de São Cristóvão, separado de Aracaju por 18 quilômetros de difícil acesso. Antes de constituir-se em Escola, Tebaida já possuía “mais de cem pequenas casas para colonos, dois grandes depósitos para colheitas; treze pequenas casas para salesianos e alunos que começariam a colônia”. (RDV. 1901, apud. Silva, 2000, p. 303). Fora, talvez, mais uma ação do Estado e de particulares no sentido de solucionar o problema da falta de braços na lavoura local? (Cf. Passos Subrinho, 2000).
Tebaida era o inferno do padre e o paraíso dos fazendeiros, ou o inferno dos políticos e a Canaã para os mosaicos salesianos. A imagem sobre a propriedade variava radicalmente nas missivas dos frades e nos discursos do deputado Fausto Cardoso. Este mesmo afirma, em abril de 1902, que “o terreno nada vale, pois são estéreis as suas terras”. No mês seguinte, as dadas já são ubérrimas e bem situadas (Cf. Cardoso, 1987, p. 616, 645). Os enviados de São Bento, por sua vez, disseram tratar-se “do melhor pasto de Sergipe para a criação de animais”. Um terreno de onde “se pode extrair a cal e a terra para se construir no local tijolos e telhas. Há também madeiras para construção”. (Cf. RDV, 1901, apud. Silva, 2000, p. 303). Mas, quando os italianos foram obrigados a enfrentar a prepotência de um vizinho invasor, a suspensão dos auxílios pecuniários do Estado, a lida com as coisas da terra – formigas, mosquitos, seca, aridez do solo, e as febres que chegaram a ceifar vidas, não houve alternativa contrária ao “delenda Tebaida”. Fecharam a casa.
A peleja em torno da Escola não se limitou à adequabilidade das instalações. Ganhando o parlamento federal, discutiu-se acalouradamente sobre os recursos mobilizados pelo Estado na confecção daquela obra civilizatória. Para o deputado Rodrigues Dória, o caso era de simples entendimento: “Chegaram a Sergipe os padres salesianos aos quais o governo do Estado ia entregar a Colônia Agrícola criada pela Assembléia. Estes padres acharam melhor, para estabelecer a Colônia, o sítio do Sr. Padre Olímpio, que fica entre a atual capital de Sergipe e a antiga – São Cristóvão (...). O Sr. Padre Olímpio cedeu o seu sítio pelo preço por que o havia comprado [com as economias que fizera em 72 meses de trabalho], dando as benfeitorias”. (Dória, 1902, in.: Cardoso, 1987, p. 621).
Para Fausto Cardoso, o nascimento da Escola agrícola estava envolto num ato de “torpeza” e não de “generosidade” da parte do presidente Olímpio Campos. Isso porque o padre doou 65 contos de réis dos cofres públicos – o equivalente a 4 anos de salário parlamentar; mandou vender o imóvel doado pela Assembléia Estadual, no exíguo prazo de 8 dias; suspendeu a referida venda, logo que os salesianos souberam do ocorrido; e, por fim, convenceu aos mesmos salesianos que melhor negócio seria comprar o seu sítio (Tebaida) por apenas 5 contos de réis, pois junto com a terra, levariam também as benfeitorias, avultadas em seis vezes o valor a ser pago pelo sítio. (Cf. Cardoso, 1987, p. 645-648).
Na terceira face da história, na versão dos salesianos, a fundação da Escola Agrícola São José ou Tebaida significou a conjunção dos interesses do padre Olímpio e do Arcebispo da Bahia, D. Jerônimo Thomé da Silva, que “desejava a presença dos filhos de D. Bosco às margens do Cotinguiba, área que fazia parte de sua circunscrição eclesiástica”. (Cf. Silva, 2000, p. 302). Era intenção de Olímpio Campos barrar o avanço dos protestantes no setor educacional em Sergipe (Cf. Silva, 2000; Nascimento, 2002). A iniciativa salesiana, além de auxiliar do projeto olimpista, foi encarada pelos primevos como uma missão, e levada a cabo entusiasticamente, “com o arroubo de um pioneiro do oeste setentrional americano” (Cf. Silva, 2000, p. 303). O fato de a Tebaida não ter completado a terceira década, deve-se em grande parte ao “terreno sáfaro e à mentalidade anti-agrária do povo”. Trabalhar no campo, em cultura recentemente escravista era uma atividade “servil e aviltante” (idem, p. 360).
Relendo a experiência dos salesianos, não deixamos de indagar se essa mentalidade brasileira teria se modificado. Quais os interesses do Estado em relação ao ensino agrícola hoje? Em Sergipe, tais questões serão debatidas amanhã e terça-feira num evento promovido e sediado pela quase octagenária Escola Agrotécnica Federal de São Cristóvão – vizinha da velha Tebaida. Aberto ao público em geral, o evento contará com as falas dos pesquisadores Jorge Carvalho do Nascimento, Luiz Antônio Barreto, Antenor Oliveira Aguiar Neto e Sônia Regina Mendonça, discutindo, respectivamente a história do ensino agrícola, a política agrícola de Gracho Cardoso, o ensino agrícola na UFS, agricultura e educação na primeira República. É uma tentativa de debater políticas públicas para o setor sem descurar-se da memória local. Bela iniciativa que vale a presença dos interessados nas coisas de Sergipe.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O ensino agrícola em Sergipe. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 19 out. 2003.

terça-feira, 14 de outubro de 2003

Os novos fragmentos de Sebrão sobrinho

[Nós], os literatelhos da roça, temos obrigação de rememorar as vidas ilustres.
Em minha terra, porém, o único que se dá a este modo de vida sou eu, talvez por que saiba menos ler que eles.
Essas frases de 1922, republicadas por Vladimir Souza Carvalho em Fragmentos de histórias municipais e outras histórias (2003), levaram-me a considerar que o Sebrão sobrinho em Laudas da história do Aracaju (1955) – seu livro mais conhecido – já havia formatado um projeto intelectual aos vinte e quatro anos. Para nossa felicidade, os frutos desse plano, produzidos nos anos 1930 e 1940, foram reunidos nessa nova publicação.
Mas, a obra, como anunciado acima por Sebrão, não seria apenas um “rememorar as vidas ilustres”. Os Fragmentos lançados em Aracaju e em Itabaiana, na última quinzena de agosto trazem de tudo um pouco: instantes auto-biográficos, poemas, lendas, genealogia e a narrativa histórica baseada em fontes cartoriais, relatórios administrativos, códigos legislativos, cronistas e historiadores que tratam do Brasil.
Como referência são tomados os municípios de Itaporanga, Rosário, Carmópolis, Simão Dias, Lagarto, Estância, Itabaiana, Ribeirópolis, Frei Paul, Neópolis e a muitos outros que não tiveram suas experiências estruturadas em forma de artigos, a exemplo de Porto da Folha, Pedra Mole, Aracaju e Santo Amaro. As narrativas, porém, não se distribuem de forma equilibrada. Sebrão sobrinho tinha lá seus motivos e preferências e, também, por isso ganharam destaque as localidades de Itaporanga e Itabaiana.
Itaporanga é contemporânea das “descobertas” de Sergipe e do rio São Francisco. Foi palco da ação dos jesuítas, gente que não contribuiu para o processo civilizatório de Sergipe: nada de instrução ou de educação religiosa; “o jesuíta só vinha a Sergipe, anualmente, olhar como iam seus grandes haveres”. (Sebrão sobrinho, 2003, p. 25).
Itabaiana, tem inventariados dezesseis dos seus mais importantes povoados. A terra do “para-cebola”, simplesmente, “formou quase todos os municípios sergipanos” e era, desde [1859], o celeiro de alimentos da capital Aracaju (idem, p. 255). Somente Lagarto rivaliza com a povoação serrana, mas não chega a criar nenhuma localidade. Pelos novos Fragmentos, vê-se que SEbrão já era o crítico mordaz dos cronistas, historiadores e tupinólogos de fora e de dentro de Sergipe. A birra com Felisbelo Freire já era conhecida, mas a sistemática correção ao trabalho de Armindo Guaraná e as flechas disparadas contra o jovem historiador José Calazans foram novidades para mim. Elas fazem pensar nas conseqüências desse tipo de debate para a construção de duas obras significativas sobre a história de Aracaju: Contribuição à história da capital de Sergipe – José Calazans (1944) e Laudas da história do Aracaju – Sebrão sobrinho (1955).
Naqueles anos da Segunda Guerra, o “cachorro da velha loba” – Sebrão sobrinho – fustigava os historiadores da terra, mas também deitava o malho na Sociologia – Qual Sociologia? A de Gilberto Freyre? A de Florentino Menezes? Davas lições de crítica documental, de gramática, de leitura das línguas indígenas. Com ar professoral, Sebrão interpolava brevíssimas e confusas considerações sobre os explicadores do sentido da experiência humana – a evolução biológica, a evolução espiritual, a predestinação.
Nesse mesmo período, também já expunha suas teses com grande ênfase: o rosarense é providencialmente um piedoso, crente, masoquista – uma herança dos negros do Catete; nunca existiu a tal pedra em forma de lagarto, interpretação usual para a origem do nome do referido município; Itabaiana acolheu o culto protestante logo após Laranjeiras, em 1885; a mulher itaporanguense inventou o desquite em Sergipe (1843); Men de Sá era um covarde, o governador Luiz de Brito, um bandido e os jesuítas Gaspar Lourenço e João Saloni uns assassinos, injustamente elevados à classe de mestres do ensino.
As longas introduções, a conversa com o leitor, as intrusões, e até uma história estruturada com repente – ou como canção de gesta, se preferirem – já estão presentes nos textos do Sebrão getulino e maynardista. Ele preferia escrever defluente à passada, embair à enganar, rutilância a brilho e uxoricídios em lugar de assassinatos de esposas. Também não se furtava em fazer uso de um gilbertifreirático, do cotiliquê paroquiático e da bagaceirocracia.
O que permanece como enigma na obra são as razões pelas quais a sua escrita ganhou essa forma peculiar. Por que Sebrão assumia-se historiador com tanta ênfase? Por que afirmava ser o único num período tão fértil da historiografia sergipana? O que o levou a produzir um texto combinando arcaísmo com fórmulas da linguagem popular, por exemplo?
A resolução desses problemas ficou a gora mais fácil com a preocupação de Vladimir Carvalho em recuperar os artigos, anotá-los e oferecer ao leitor um precioso índice onomástico. Às novas possibilidades de cruzamento das referências de fontes, autores e personagens, gostaria de acrescentar 3 questões que podem ajuda r a decifrar os tais enigmas: seria o jovem itabaianense um exemplar temporão de uma cultura retórica em vigor na segunda metade do século XIX? O trabalho docente e a tarefa de inspeção escolar teriam se transformado em missão de vida para Sebrão? Teria o autor sobrevivido ao uma espécie de ‘terremoto de Lisboa” em suas primeiras investidas intelectuais?
Muita tinta há de ser gasta com as letras desse historiador, afirmei há três semanas. Mas, penso que a epígrafe acima – plena de ironia, exagero e ressentimento – pode ser uma chave para a compreensão da escrita histórica de Sebrão sobrinho.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Os novos fragmentos de Sebrão Sobrinho. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 14 out. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 12 de outubro de 2003

O sergipanismo de Nunes Mendonça

No final dos anos 1950, Sergipe era um pequeno Estado da região Leste (Sergipe, Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Distrito Federal), com limites territoriais pouco precisos, população predominantemente rural, onde a construção de fábricas de cimento e a exploração de jazidas petrolíferas eram apenas uma esperança. O “atraso sócio-econômico” poderia ser medido pelo avanço das áreas de pastagem, decréscimo da produção e do nível de emprego na cotonicultura e na indústria têxtil, pelo êxodo anual de 70.000 sergipanos em direção aos estados do Sul. (Cf. Mendonça, 1958; Nascimento, 1994).
Não era de se estranhar que alguns intelectuais buscassem alternativas para essa provável estagnação. Menos estranho seria ainda se esse intelectual fosse vinculado a um partido político e desse sustentação ao governo estadual. Nunes Mendonça (1923/1983) foi um desses intelectuais. Aqui ele ganha destaque por ter associado o problema do subdesenvolvimento às reformas educacionais ao tempo que sintetizava os traços dominantes do sergipano.
Mendonça (1923/1983) era itabaianense. Trabalhou como funcionário público, chegando a técnico educacional e professor do Instituto de Educação Rui Barbosa e diretor do Centro de Estudos e Pesquisas Educacionais. Era homem de ação. Cedo manteve contatos com Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, fazendo incursões pela Sociologia da Educação.
Seu livro que melhor aborda a temática é A educação em Sergipe (1958). Uma espécie de diagnóstico das instituições escolares no Estado, acompanhado de soluções social-desenvolvimentistas. Mas, o caráter do pensamento sobre educação de Nunes Mendonça, bem como a sua trajetória como professor e parlamentar não são objetos deste texto. A professora Eliana Souza, quem melhor estudou a sua experiência intelectual, lançará um livro, nas próximas semanas, sob o selo da Editora da UFS e com o patrocínio da Fundação Oviedo Teixeira, tratando inclusive desses tópicos. Vale a pena esperar o evento. Interessa-me, no momento, a idéia de sergipanidade desenvolvida pelo itabaianense.
As conclusões do professor Mendonça sobre a sergipanidade basearam-se em trabalhos de survey, entrevistas e observações. Suas amostras incluíram exemplares das várias “zonas ecológicas do Estado” – Litoral, Central, baixo São Francisco, Sertão do São Francisco e Oeste –, embora admitisse que tais zonas nem sempre compusessem unidades homogêneas geográfica e culturalmente falando (Cf. Mendonça, 1958, p. 40-41). Todavia, o uso do quantitativo não significou o abandono das explicações impressionistas, como pode se ver abaixo.
Nunes Mendonça chegou ao tema indiretamente, pois o seu interesse era compreender a natureza e o funcionamento do “sistema escolar”. Ele acreditava que a melhoria da cultura educacional seria o motor, em última instância, do desenvolvimento local. As “características psicológicas do sergipano” tinham a função de auxiliar no conhecimento do sistema a ser transformado. Mas, como as mudanças educacionais prescindiam das reformas econômicas, a sua proposta ganhou o mesmo caminho das demais atitudes salvacionistas; envolveu-se no conhecido enigma: o que muda primeiro? O sistema produtivo ou o sistema educacional? Mudariam os dois sistemas ao mesmo tempo?
Para Nunes Mendonça, os principais problemas geo-econômicos do Estado de Sergipe ainda eram a pequenez territorial, os rigores da seca, as deficiências dos solos cultiváveis, o caráter rudimentar dos instrumentos e dos métodos de exploração agrícolas, e a ausência de nexos entre as instituições escolares e o setor produtivo. Isso provocava baixa produtividade, que alimentava o círculo vicioso do subdesenvolvimento.
Esse estágio da economia, por sua vez, condicionava o ritmo (lento) das mudanças sociais. A oligarquia havia sido abandonada há pouco (?). Em termos de costumes, por exemplo, ainda vigorava nas “camadas incultas” o irracionalismo das práticas supersticiosas, resultantes da mescla do catolicismo com cultos ameríndio, africano e espírita (Cf. idem, p. 56).
Em suma, as adversidades do clima, solo, limitações territoriais; a mentalidade arcaica, e o apego às práticas culturais primitivas dominavam a experiência sergipana. E foi, a partir desses dados e condicionantes, que Nunes Mendonça produziu a idéia de que o sergipano era “psicologicamente” cético, desconfiado, econômico e individualista. Vejamos o que mais disse o autor:
“...em hábitos de vida e costumes, expressões lingüísticas e prosódia, o sergipano assemelha-se ao baiano, em ânimo, podemos assegurar, equipara-se ao cearense. Ambos – sergipanos e cearenses – premidos por hábitos idênticos, embora oriundos de causas mais ou menos díspares reagem com a mesma obstinação, enfrentando, desajudados mas corajosamente, as vicissitudes da natureza.
O sergipano, porém, ao contrário do cearence, possui acentuado sentimento de inferioridade...
Não herdou o espírito arrojado do pioneiro lusitano que conquistou Sergipe no primeiro século: absorveu a índole de outro tipo de colonizador português – comedido e sedentário, que veio em seguida”. (idem, p. 54-55).
O polêmico Nunes Mendonça foi aposentado pelo regime em 1964. Morreu distante de Sergipe, em Vitória, a 15/06/1983, manifestando o desejo – prontamente atendido – de não ser sepultado no Estado natal. (Cf. Souza, 1998, p. 81n). O seu degredo, paradoxalmente, pareceu cumprir um traço identitário da sociedade sergipana. Traço esse, colhido e anunciado pelo poeta Freire Ribeiro em carta aberta endereçada ao desditoso professor da Escola Normal: “sou hoje em dia um homem a caminhar sob um fardo de desencantos!... (sic) Nada tenho a fazer, prisioneiro numa terra sem horizonte, estreita, acanhada para os homens de espírito que têm, em Sergipe, o fim das flores que enfeitam os banquetes e se destinam depois à lata do lixo! Essa Judéia – concluía citando Pereira Barreto – apedreja os seus profetas. (Cf. Freire, p. 1, in. Souza, 1998).

Para citar este texto
OLIVEIRA, Itamar Freitas de. O sergipanismo de Nunes Mendonça. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 12 out. 2003. <http://itamarfo.blogspot.com/2003/10/o-sergipanismo-de-nunes-mendonca.html>.

domingo, 5 de outubro de 2003

O sergipanismo de Prado Sampaio

Joaquim do Prado Sampaio Leite (1865/1932) era bacharel em direito e viveu sua maturidade intelectual no período áureo de um movimento intelectual renovador, a Escola do Recife (Cf. Paim, 1981, p. 111-134). Titulou-se em 1889. Atuou como promotor público, juiz de direito, secretário de polícia e advogado. Fez-se reconhecer por sua produção poética e filosófica, deixando, nas páginas dos periódicos locais, algumas das mais contundentes marcas do jeito de demonstrar a identidade sergipana, de rememorar os homens famosos do Estado, de pensar e de produzir ciência. (Cf. Guaraná, 1924; Freitas, 1998; 2000).
Para o programa científico do IHGS, Sampaio estabeleceu que não mais se deveria “aclarar pontos obscuros ou recantos crespusculares” da história e da geografia de Sergipe. O grêmio estaria, sim, encarregado de estudar antropogeografia sergipana. O que interessava naquele momento era relação homem/meio físico, inspirado nas teses de F. Ratzel. (Cf. Sampaio, 1913, p. 24-25).
Com a adoção da antropogeografia, o estudo da história seria renovado. Deixaria de configurar-se numa “infinda comemoração de batalhas ao desfile secular de dinastias sepultas” – vê-se como esse tipo de história política era alvo de fortes críticas já no início do século XX. O que se buscava, agora, no saber de Clio, era o “evoluir das ciências, das letras, das artes, das indústrias, das religiões”, “as criações fundamentais da humanidade”, em suma, os artefatos da civilização. A função dessa nova história e desses novos objetos era auxiliar os estudos sobre a “sociologia dos povos” – do povo sergipano em particular. (idem, p. 24).
Prado Sampaio também tratou da construção e da conservação de alguns mitos formadores de Sergipe. Políticos e intelectuais foram os personagens privilegiados. Sua atitude era panegírica, ainda que justificada em termos científicos. Dentro desse espírito ritualístico, vários sergipanos  foram homenageados: Ivo do Prado, Armindo Guaraná, Cid Lins, Brício Cardoso, Sílvio Romero, Tobias Barreto, Inácio Barbosa, e M. P. Oliveira Valadão. Aqui e ali, uma referência às forças mecânicas, ao valor dos mortos no destino dos vivos, à lei de adaptação etc.
Além das questões memorialísticas, ganhou relevo, na sua produção, o esforço em comprovar e defender a identidade sergipana. Foi o conjunto de textos mais rico e também o mais complexo. O seu sergipanismo foi gestado sobre o paradigma dos vulgarizadores da biologia que atuaram entre a última década do século XIX e a primeira do século XX. (Cf. Oliva, 1977; Freitas, 1998).
As idéias de sociedade (organismo), ciência (busca pela verdade), método (experimental), tempo (progressivo, linear), e motor da história (a evolução das espécies) apontam para uma mescla heterodoxa entre as teses dos pensadores Ernest Haeckel (1834/?) e Herbert Spencer (1820/1903)
Essa fusão resultou numa teoria da identidade e a sua imediata aplicação. A teoria prescrevia a “unidade etno-psicológica” sergipana sob o regime de duas leis: lei de hereditariedade e lei de adaptação. Os elementos hereditários (étnicos) eram estáticos e provinham da psicologia nacional. Assim, os mitos e as lendas, importadas do Brasil, Sergipe já os possuía com vantagem: o povo sergipano apresentava-se muito mais homogêneo do que o povo brasileiro, fato comprovado pela unicidade da língua local, já que a ação da imigração estrangeira no Estado fora quase insignificante.
Quanto aos elementos dinâmicos – história, literatura, arte e ciência – que sofriam os influxos dos rios, os problemas com a fertilidade do solo, as secas, a precariedade do porto, da relação homem-meio, enfim, estes já se encontravam em franca especialização, ou seja, era possível visualizar as singularidades da nossa experiência histórica e da nossa produção estética, quando postas em comparação com o trabalho de outros Estados. Exemplificando: na história, Sergipe – mais que [que o baiano] –, contribuiu durante as lutas pela integridade territorial e política do Brasil.
Na literatura, Sergipe ajudou a renovar a poesia, a filosofia, e o padrão estético brasileiros, além de desvelar a história da democracia e praticá-la com maestria no parlamento nacional. Esse foi o legado de alguns sergipanos, como Tobias Barreto, Silvio Romero, João Ribeiro, Felisbelo Freire e Fausto Cardoso. Portanto, Sergipe já era “personalidade” na história, economia, literatura e ciência. Por volta de 1910, só não conseguira autonomia sob o ponto de vista do território geográfico, desfalcado pela hegemonia baiana.
Grande parte dessas teses está depositada nos ensaios A literatura em Sergipe (1908) e Sergipe artístico, literário e científico (1928), provavelmente a primeira síntese publicada em livro de uma história da cultura sergipana. Esses trabalhos foram interpretados como superficiais, genéricos (Cf. Lima, 1971, p. 80-81; 1984, p.19) e, com grande dose de acerto, o seu autor foi considerado um “intelectual diletante” (idem, 1971, p. 81), isso quando não o acusaram de ter apenas “vomitado idéias e teorias mal digeridas”. (Diniz, apud. Lima, 1971, p. 81).
Assim mesmo – e por isso mesmo –, penso que suas obras devem ser lidas compreensivamente, sobretudo pelos que também vêem a sergipanidade em termos de “caráter” e costumam compará-la com portentosas baianidades, mineirices, gauchismos etc., concluindo por uma incômoda  ineficiência do nosso “orgulho de ser sergipano”.
Para a reflexão, fica a tese de Prado Sampaio: “É, de fato, o sergipano um misto de acanhamento e de audácias”; de acanhamento, criado pelas condições do meio físico e social – situado num minúsculo território, comprimido pela Bahia, desprestigiado pelo poder central; e de audácias, como fenômeno de reação e de revolta, ante às sucessivas disputas e perdas políticas nos embates com poderosos Estados da federação. (Cf. Sampaio, 1928, p. 102). Esse refrão está completando cem anos e parece que vai ecoar por mais alguns anos.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O sergipanismo de Prado Sampaio. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 05 out. 2003.

sábado, 4 de outubro de 2003

A alma de Guedes Cabral

Igreja Matriz Sagrado Coração de Jesus. Laranjeiras-SE, 2008.
Conta Jackson da Silva Lima (1995) que o médico Domingos Guedes Cabral se estabelecera em Laranjeiras, por volta de 1876, após ser banido de Salvador, “onde enfrentara o clero e seculares que se insurgiram contra a sua tese de doutoramento – As funções do cérebro.” (Lima, p. 66-71, 102-104). Não vinha fazer filosofia, e sim clinicar. Mas, não ficou indiferente às provocações, quando fustigado por médicos e magistrados locais, incomodados com o seu “irritante e inoportuno ateísmo” (Oliveira, apud. Lima, 1995, p. 70).
O que tinha de tão nefasto nessa tese? O trabalho respondia a uma questão posta pela Faculdade: quais eram, no entendimento do acadêmico, as funções desse órgão superior chamado cérebro? A resposta de Cabral obedeceu aos seguintes movimentos: 1. exposição das experiências dos fisiologistas europeus – e até das concepções de filósofos da antigüidade a psicólogos do século XIX; 2. crítica e comparação dos resultados; 3. conclusão sobre o problema apresentado; e 4. refutação dos argumentos – metafísicos, sobretudo – em contrário. A conclusão, sob o ponto de vista da fisiologia e de suas ciências auxiliares, foi a seguinte: “sensação, movimento, pensamento, sentimento, encontramo-los nós como propriedades dos elementos cerebrais: a alma porém, não, nem lhe encontramos vestígios aí”. (Cabral, 1876, p. 212).
Ora, a sentença peremptória não significava pouco para a mentalidade de acadêmicos e homens comuns de 1876. A alma que, segundo os filósofos, já havia secularmente viajado pelo coração, peito, sangue, sistema nervoso, glândula pineal, pela água contida nas cavidades cranianas e, finalmente pelo cerebelo, simplesmente não morava mais no cérebro! “Para encontrá-la aí, fora preciso primeiro procurar a fé. E a fé reside num ponto do cérebro inacessível à ciência”. (idem, p. 104).
Isso desencadeava uma importante conseqüência. Se a alma não morava no cérebro, as faculdades intelectuais – sentimento, movimento, entendimento e vontade – passavam a ser entendidas como atividades fisiológicas sob a responsabilidade exclusiva desse órgão. Nada de metafísico poderia explicar como e por que nos apaixonamos, pensamos, e aprendemos, por exemplo.
A tese não discutia sutilezas da fisiologia. Cabral era um cientificista radical: cultor da idéia de que o espírito e os métodos científicos deveriam estender-se a todos os domínios da vida intelectual e moral, sem exceção. (Cf. Zaragüeta, 1955, p. 413). Para ele, instituir a ciência positiva em lugar da metafísica significava, efetivamente, oferecer um novo mundo aos “desprotegidos” e aos “ignorantes”.
Dessa forma, o que a sociedade via como “perverso” e o Direito como “criminoso”, a ciência chamaria “doente”; onde o catolicismo classificava como “diabólico” e os espiritualistas a “impossibilidade de manifestação do Eu psicológico”, a ciência explicava em termos de desarranjos anatômicos ou desvios fisiológicos. Seria o fim dos exorcismos, das penitenciárias, masmorras e patíbulos, pregava Guedes Cabral. Triunfando a ciência positiva, viveríamos sob o domínio da “mão sábia do mestre e da droga farmacêutica”. (Cf. Cabral, 1876, p. 212-213).
O tempo passou e as suas teses ganharam registros na historiografia sobre as idéias no Brasil. Agora que história da psicologia também expande o seu olhar “para o âmbito dos estudos médicos e psiquiátricos, da religião e da reflexão política” (Cf. Campos, 2001, p. 19-22), penso que também não seria inoportuno reservar ao Guedes Cabral uma página da próxima edição do Dicionário Biográfico da Psicologia no Brasil (Rio de Janeiro: Imago, 2001), onde já têm lugar os sergipanos Silvio Romero e Manoel Bonfim.
Como aperitivo psicológico, segue abaixo uma mostra das idéias defendidas pelo autor. “Clorofórmio e alma” é parte de um escrito – “Cérebro e alma” – anunciado na tese como publicação futura. O texto é uma pérola em estilo – nisso não difere da tese. Foi publicado no Almanaque Literário de São Paulo (1884, p. 20-21), e é provável que tenha posto a pequenina Laranjeiras, pela primeira vez, nas residências dos leitores liberais republicanos da paulicéia. 
O clorofórmio e a alma
Inúmeras vezes tenho empregado o clorofórmio em meus doentes. De cada uma delas, antes de levantar o instrumento cirúrgico, paro a refletir sobre um grande fenômeno que ali se passa.
Sim, eu tenho diante de mim um importantíssimo fato; uma coisa que mereceria toda a atenção dos que consideram o homem uma dualidade.
Ali, sobre a mesa operatória, mudo, imóvel, o cadáver.
Não é o homem, por certo; nem é o cadáver.
Aquilo está vivo; mas não tem evidentemente alma. Seu estômago digere, seus pulmões respiram, seu coração bate. Mas não tem movimento, nem sentimento, nem entendimento, nem vontade.
Qual foi, entretanto, o fenômeno físico-patológico que ali se passou?
Aniquilou-se porventura o órgão-instrumento-da alma? Está o cérebro destruído, lesado?
Não. Se podésseis impunemente ali, como se verifica na análise necroscópica, abrir a caixa óssea, vê-lo-eis em toda a integridade de sua estrutura e de sua posição natural. Células, tubos, cilynder-axis, capilares, tudo ali está: seios, cavidades, circunvoluções, nada saiu de suas posições normais. O cérebro está intacto: apenas não funciona. Eis tudo.
O que se suspendeu, portanto, ali foi só o mecanismo: o que fez a ação do anestésico foi abolir apenas a função.
Mas, essa abolição o que é em suma?
A cessação do sentimento, do movimento, do entendimento, da vontade.
Logo, todas estas cousas não eram mais do que a função daquele órgão.
Eu reflito...(sic) E como o trabalho urge, aplico vigoroso o ferro sobre as carnes.
E então, quando o gume da faca ou do bisturi silva sobre os músculos, quando range a serra sobre os ossos, e o sangue espadana daquele cadáver vivo, vivo pelos tecidos, morto pelo moral, – eu quisera ter diante de mim um sábio metafísico para responder-me – o que é a alma.
Guedes Cabral. Laranjeiras – Sergipe (Do Cérebro e alma).

Para citar este texto
FREITAS, Itamar . A alma de Guedes Cabral. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B - 6B, 04 out. 2003.<http://itamarfo.blogspot.com/2010/10/alma-de-guedes-cabral.html>.