domingo, 9 de fevereiro de 2003

Tempos de ciência, templos de civilização

Bacharéis em medicina e direito, engenheiros, militares, professores, comerciantes e industriais formaram o corpo de intelectuais de Sergipe no período 1910/1930. Esses autores, acomodados sob a proteção de alguns oligarcas, ocuparam, em sua maioria, postos na burocracia local e desdobravam-se na produção livreira e periódica em vários gêneros e espécies literárias.
A movimentação desse grupo restrito concentrava-se na capital, Aracaju, centro político, administrativo e financeiro do Estado, vitrine para as mais recentes conquistas urbanas que o Rio de Janeiro e Paris poderiam oferecer: o telefone, luz elétrica, água tratada, bondes, trem e também, teatro, biblioteca e cinema.
Os intelectuais divergiam quanto ao credo religioso, as formas de praticar a política e as conclusções acerca da “ciência moderna”. Mas, concordaram que as transformações operadas nesses níveis de realidade indicavam novo ritmo a ser vivido. Era a “civilização” que estava prestes a atropelar os sergipanos.
Mas, para que o Estado (conquistasse, acompanhasse) se apropriasse desse novo ritmo, era preciso recuperar o tempo perdido. Era necessário instruir operários, alfabetizar trabalhadores do campo, fundar escolas de nível superior, inventar a solidariedade, instituir a benemerência. Para que a vaga civilizatória não passasse ao largo, era importante incentivar a apreciação estética e a reflexão sobre ciência
Esse entendimento estimulou a iniciativa particular (tutelada pelo Estado) na fundação de instituições artísticas, literárias e, entre elas, o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Instalado em 1912, o IHGS transformou-se no mais importante centro de debates científicos que se têm notícia durante a primeira República.
Apesar de marcados pelas utopias iluministas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o IHGS não poderia seguir os mesmos ditames da matriz carioca. Isso implica dizer que o IHGS manteve (em nível discursivo) uma relação senão de confronto, pelo menos de crítica em termos de poder central. O discurso era francamente federalista e as suas mais significativas atividades estiveram voltadas para o resgate do espaço territorial sergipano, construção de uma memória e a invenção de uma identidade para o Estado.
Esse “outro lugar” também foi marcado pela apropriação das teses formuladas pelos conterrâneos ilustres, fundadores da Escola do Recife: Tobias Barreto e Sílvio Romero. Uma ciência “moderna” e positiva, baseada na observação, experiência e na indução. Um conhecimento com postulados extraídos da biologia, sintetizando esquemas nem sempre intercambiáveis, como os de Spencer, Haeckel e Ratzel. Essas (in)apropriações, por conseguinte, marcaram os projetos d escrita da história sergipana no período, veiculados na Revista do IHGS.
O resultado desses lugares e interesses foi uma produção dividida entre a atividade memorialística e a atividade historiadora propriamente dita. Com função identitária, o IHHGS manteve ligação estreita com o Estado, recebendo subsídios financeiros e garantindo a presidência honorária da instituição para todos os governadores. De forma efetiva, colaborou na descoberta, preservação e rememoração dos eventos fundadores de Sergipe e participou ativamente do reconhecimento e defesa do território sempre que solicitado.
Á medida que cumpria tais tarefas, o IHGS acabou por identificar os maiores problemas da sociedade local: o desprezo dos sucessivos governos do “centro”, a falta d esolidariedade, a ignnorância e a ausência do espírito de iniciativa entre os sergipanos. Por fim, as práticas da instituição, configuradas em suas reuniões semanais e nas páginas da Revista, forjaram uma “sergipanidade” sintetizada na bravura dos soldados e políticos, na visão progressistas de alguns dos governadores do Estado e, sobretudo, na inteligência dos seus laureados poetas e pensadores.
Como produtor de conhecimento, o IHGS empenhou-se na escrita de memórias históricas e geográficas e na recolha de fontes sobre o passado local. Em função do “lugar social”, predominnou a caracterização das atas, cartas, decretos, relatórios oficiais, relatos de proprietários, testamentos dos presidentes da província como objetos privilegiados para a heurística, fazendo supor que a historiografia produzida pelos historiadores do futuro seria, eminentemente, centrada nas ações individuais e na atividade política.
Nas abordagens geográficas, pouca reflexão conceitual, ênfase na desccrição e classificação de acidentes. A intenção era auxiliar o conhecimento do espaço geográfico para melhor defesa e aproveitamento dos recursos naturais, com vistas ao desenvolvimento econômico edo Estado.
Em termos de historiografia, houve ênfase na produção de biografias de políticos, pensadores e literatos, afirmando que o maiora produto do menor Estado do Brasil era mesmo a sua inteligência.
Além do elogio, vigorou o estudo monográfico (apensar de programadas, as sínteses não vingaram). As “memórias” predominantes transformaram em objeto histórico a experiência de comunidades municipais e, em menor grau, de grupos profissionais e religiosos.
Os sócios firmaram vícios e virtudes humanas como motor da história e encarara a verdade clássica como princípio do historiador. Tais resultados acabaram por contradizer os projetos iniciais do Instituto, baseados em uma “ciência moderna”. A oção historiciista, mais que uma proposta epistemológica e também medotológica (não teorizada), impôs-se como necessidade. O local teria que ser exaltado, conhecido e reconhecido. Era uma questão de sobrevivência compreender e divulgar a experi~encia sergipana a partir das informações geradas no próprio Estado.
Esa foi, em síntese, um pouco da experiência da “Casa de Sergipe” no período regido pela geração fundadora, composta por homens como Florentino Menezes, Prado Sampaio, Manuel dos Passos de Oliveira Telles, Luiz José da Costa Filho, Francisco Antônio de Carvalho Lima Júnior e Elias do Rosário Montalvão. Mas, ainda há muito para contar sobre as gerações posteriores, notadamente, do período em que o Instituto transformou-se num centro cultural e atende a dezenas de jovens estudantes ávidos por informações sobre a terra de Tobias Barreto. Tendo completado noventa anos em 2002, o IHGS atende à comunidade de pesquisadores com carinho e aguarda auxílios para sobreviver a mais noventa anos como o guardião da memória e produtor da identidade sergipana.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Tempos de ciência, templos de civilização: o trabalho da geração fundadora do IHGS. A Semana em Foco, Aracaju, p. B 2-B 2, 09 fev. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2003

Síntese e historiografia: nota de pesquisa

Em Lógica, síntese é o método de demonstração que parte do simples para o composto, das causas para os efeitos, da parte para o todo. No ofício do historiador castiço, a síntese compõe a última etapa do método e é sinônimo de composição, ou seja, a reunião das partes analisadas, dos fatos estabelecidos, uma exposição que pode ou não resultar em generalização. Na escrita da História, entretanto, a síntese significa muito mais do que uma etapa da estratégia de conhecer o passado, ela é o próprio modus sciendi.
Essa forma particular de conhecer, a síntese, materializa-se convencionalmente nos livos didáticos de História e nos artigos de vulgarização publicados em magazines. O consumidor desses produtos sabe muito bem o que procura. Ele quer conhecer “toda” a história de Sergipe, “toda” a história do Brasil colonial a um só fôlego. Para atender a essa demanda, o escrevinhador produz, adapta, redesenha, mas a estrutura da narrativa acaba por reproduzir o que já existe no mercado, o mercado (professores e alunos dos ensinos fundamental e médio) assim a exige: história narrativa, linear, diacrônica, simples, concisa e, sobretudo, convincente.
Por tais atributos, pode-se concluir que fazer síntese histórica não é trabalho fácil. Os problemas parecem mais desafiadores. Como periodizar? Deve-se usar um mesmo determinante para recortar o tempo? Como agrupar os assuntos, temática ou sincronicamente? Deve adotar um sentido para a história para tornar-se inteligível? Os impasses são muitos (diferentemente dos trabalhos monográficos), e, é claro, os iniciados afirmarão que as soluções dependem primordialmente das finalidades do projeto e das concepções de História professadas pelo redator.
Sobre a história de Sergipe (totalidade jurídico-política estabelecida a partir do século XVII) a historiográfica de síntese é diminuta, sintoma dessa dificuldade de reunir fragmentos diversos da cultura dos nativos numa pluralidade de tempos, lugares e situações incomensuráveis. O historiador discute, agrega novos conhecimentos e recursos, mas o número de sínteses não se amplia: possuímos apenas três exemplares que escapam ao formato didático que são as Histórias de Sergipe de Felisbelo Freire (1891), Acrisio Tôrres de Araujo (1966) e João Pires Wynne (1971).
Não fora essa espécie de princípio genético, esse instinto que busca no século XVI as raízes identitárias de uma personagem chamada Sergipe, esse número poderia ser menor. E posso até antever: partindo do atual debate teórico-metodológico, é pouco provável que o historiador local aventure-se a narrar a trajetória de “Sergipe” emprestando-lhe uma experiência quadrisecular. Temos, a esse respeito, o exemplo de Maria Thétis Nunes que vem consumindo a personagem em doses espaçadas, mesmo fazendo uso de uma filosofia da História que facilita a unidade das partes na composição da síntese.
Mas, mas a minha preocupação não é com a totalidade “quadrisecular” da experiência sergipana. O interesse pela síntese é, por hora, circunstancial. Ele surgiu no momento em que eu iniciava incursões sobre a ordem jurídico-administrativa monárquica, no âmbito da província sergipana. Queria saber como funcionava a burocracia, não tanto as suas práticas rotineiras (ficaria satisfeito apenas com um conjunto de informações que permitissem a elaboração de alguns organogramas). Não esperava encontrar uma História administrativa, é claro. Mas, as sínteses que tratam sobre a experiência do século XIX poderiam auxiliar no intento, o que, de fato, não ocorreu. Era preciso, então, partir de fontes primárias e reconstruir os tais organogramas.
Nesse meio tempo, qual não foi a minha surpresa, constatei que as fontes geradas pela burocracia monárquica (os relatórios de presidente de província) ofereciam muito mais que as informações sobre a experiência local, elas próprias forneciam a estrutura narrativa desse modus sciendi que é a síntese historiográfica.

Para o estudo sobre o século XIX:
Ler a questão da administração e funcionários em José Murilo de Carvalho e Sérgio Buarque de Holanda (O Brasil monárquico).
Contar o tempo que os vice-presidentes sergipanos estiveram à frente do governo. As políticas de educação podem ter partido deles e não dos presidentes forasteiros.
Caso insista nas políticas presidenciais, verificar os nexos entre o indicado e a política em vigor no poder central (política partidária e políticas públicas para a Educação).
Os partidos não eram tão iguais (idéias) quanto a historiografia tem afirmado. É preciso estudar as pessoas, seus projetos e atitudes para conhecer as cores dos partidos Liberal e Conservador. Daí ser possível estabelecer-se conexões entre partidos e políticas de educação.

Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. Síntese e historiografia: nota de pesquisa. São Paulo, 5 fev. 2003.

Fonte da imagem:
http://umpoucosobrecor.wordpress.com/category/cor-e-suas-caracteristicas/


Referências
LOBO, Maria Eulalia Lahmeyer. Apresentação. In.: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das e MACHADO, Humberto Fernandes. Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 13-15.
Síntese. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa Caldas Aulete.  3 ed. Rio de Janeiro: Delta, 1974. p. 3383, v. 5.
WYNNE, J. Pires. História de Sergipe (1575/1930. Rio de Janeiro: Pongetti, 1870.
ARAUJO, Acrísio Tôrres. Pequena História de Sergipe. Aracaju: [sn], 1966.
FREIRE, Felisbelo. História de Sergipe. 2 ed. Petrópolis: Vozes/Governo do Estado de Sergipe, 1977.
GARCIA, Othon M. Pondo ordem no caos. In.: Comunicação em prosa moderna. 10 ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1982. P. 315-326.