domingo, 10 de março de 2002

Diálogos com Calazans: A historiografia sobre Sergipe nos últimos 30 anos[3]

O Social
Nos anos 1950/1970, uma História do social no Brasil compreenderia três espécies de preocupações: 1. a experiência de grupos estruturados ou do “povo” (em oposição à vida de personagens ilustres – uma versão de história política); 2. as formas de consciência, as relações sociais mediadas pela estrutura econômica (estudo associado à Economia e a Sociologia); 3. uma teia de ações e sentimentos configurados na formação étnica, nos costumes, visões de mundo, vida cotidiana entre outras (em aliança com temáticas e métodos da Antropologia). Esta última tendência, para J. Honório Rodrigues, estaria muito bem representada em Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Casa Grande e Sensala, de Gilberto Freyre.[1]
Se José Calasans excluiu a História Social do seu estudo historiográfico, não deixou de citar, todavia, os problemas do “antilusitanismo, as devastações do primeiro e segundo ‘cólera’, as questões da extinção do tráfico e da escravidão” como típicos objetos da história econômica e social. (cf. Calazans, 1991, p. 22). Outro vestígio de sua crença na especificidade desse domínio (o social) está na própria tese para o concurso à cadeira de História do Brasil e de Sergipe da Escola Normal “Rui Barbosa”. Aracaju: contribuição à história da capital de Sergipe é merecidamente um trabalho de história social. Essa era a avaliação de um concencioso resenhista do período, José Amado do Nascimento, que aguardava também a História social de Sergipe. (cf. Amado, 1942, p. 87-93). Calasans chegou a confessar o desejo de escrever um ensaio sobre a “história de nossa formação”. Concretizada tal obra, chamar-se-ía Currais e Engenhos de Sergipe. (cf. Calazans, 1995, p. 8).[2] Na ausência dessa “cachaça” freyriana, o autor da Introdução incluíu o ensaio histórico-antropológico de Felte Bezerra intitulado Etnias Sergipanas (1950).
No final dos anos 1990, os estudos com feição antropológica (tal como imaginara Calazans) “migraram” da História Social para a História cultural (ou História sócio-cultural) e tomou corpo como “social” uma história das classes, da família, do trabalho e da escravidão. Em Sergipe, tais problemas e temáticas foram exploradas por geógrafos, sociólogos, antropólogos, historiadores e economistas. O resultado desse esforço, dada a dispersão dos estudos e a ausência de uma disciplina ou campo institucionalizado que lhe desse sustentação, foi a configuração da mais exígua das áreas escolhidas para essa exposição sobre Sergipe.
Entre os geógrafos, ou melhor, entre os participantes do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFS, há diversos trabalhos que assumem, no todo ou em parte, uma perspectiva historiográfica sobre a experiência do social sergipano. As questões mais comuns dizem respeito às formas de organização do espaço rural, o cotidiano do agricultor, a instituição de colônias e sindicatos, a modernização e diversificação da produção, e os conflitos pela propriedade da terra. O acesso às dissertações do NPGEO é mediado pelo catálogo da Produção da Pós-Graduação da UFS: 1888/1998. (cf. Freitas, 1998). Uma boa amostra do produto desse programa pode ser visualizada no trabalho coletivo dos mestrandos intitulado Camponeses de Sergipe: estratégias de produção, organizado por Lourival Santana Santos (1996).
Dos estudos de feição sociológica podem ser citados os trabalhos de Rosemiro Magno da Silva e Eliano Sérgio Azevedo Lopes. Ambos ocuparam-se de uma problemática que ganhou a mídia nos anos 1990, a distribuição e as formas de ocupação da terra no setor rural, a história dos grupos assentados e a posição dos vários setores da sociedade civil sobre os processos de reforma agrária. (cf. Silva, 1992, Silva e Lopes, 1996). Nessa direção seguem os livros de Ariosvaldo Figueiredo O negro e a violência do Branco (1977), uma antítese dos trabalhos que “adocicaram” a relação entre senhores e escravos no Brasil e em Sergipe (1977). Em perspectiva inversa, seguindo os passos de Casa grande e senzala (Gilberto Freyre 1933), Orlando Dantas publicou Vida patriarcal de Sergipe (1980), estudo descritivo, memorialístico que aborda as origens das famílias sergipanas e o funcionamento dos engenhos, sensalas e fazendas de criação.[3] Outro trabalho de Ariosvaldo Figueiredo intitulou-se Enforcados: o índio em Sergipe (1981), livro de denúncias sobre os mecanismos utilizados pelos grandes proprietários para negar a existência dos indígenas.[4]
Os grupos indígenas também foram tema dos trabalhos de Beatriz Góis Dantas. Com formação na área de Antropologia e História, essa autora organizou a documentação e reconstituiu a trajetória de aldeias e/ou missões de Água Azeda, Geru, Chapada e Xocó. (cf. Góis, 1976, 1982, 1987,  1992, 1999). Nessa linha, o trabalho mais significativo foi Terra dos índios Xocó (1980) em co-autoria com Dalmo Dallari que apresenta documentos comprobatórios dos direitos de propriedade dos índios sobre as terras da Ilha de São Pedro (Porto da Folha-SE). O negro também foi objeto de estudo de Beatriz Dantas. Além dos títulos arrolados neste trabalho, relativos à esfera da cultura, produziu um capítulo de livro intitulado O negro em Sergipe (1994).
Os historiadores também contribuíram para o desvelamento da experiência “branca, negra e indígena”. Em termos de síntese, destaca-se o já citado Sergipe Colonial I de Maria Thetis Nunes. O trabalho escravo e o destino destes pós-abolição são estudados por Josué dos Passos Subrinho (1994 e 2000) em Reordenamento do trabalho.[5] Essa obra tanto pode ser classificada História Econômica como estar incluída na listagem da História Social, já que fornece novos elementos à historiografia econômica clássica para o entendimento da estrutura fundiária, agrária, mão-de-obra e capitais nordestinos, além de lançar luzes sobre a experiência de alguns segmentos sociais sergipanos no período 1850/1930 como os trabalhadores livres pobres, os escravos e os senhores de engenho.[6]
Outro importante estudo de “fronteira” (História Econômica/História Social) é a dissertação de mestrado de Francisco Carlos Teixeira da Silva (1981) intitulada Camponeses e criadores na formação social da miséria. Talvez, tenha sido essa a primeira História assumidamente “social” sobre Sergipe. O trabalho abrange um século sobre vivência da região do sertão do São Francisco (1820/1920). Trata-se de uma história agrária que não despreza o estudo da demografia, da distribuição de espaço, poder e riqueza, para explicar o processo que transformou as regiões de Porto da Folha, Gararu, Poço Redondo, Itabi e Canindé em “um dos maiores bolsões de miséria do Brasil contemporâneo.”[7]
Sobre revoltas de escravos deve-se examinar os trabalhos de Lourival Santana Santos (1992), Negros e brancos: uma pedagogia da violência, e alguns artigos publicados por Luiz R. B. Mott na citada coletânea Sergipe Del Rey. Campanhas abolicionistas foram tratadas por Maria Neli Santos (1997) em Sociedade Libertadora Cabana do Pai Tomás. Nessa obra, a autora descreve a trajetória do jornalista Francisco José Alves e sua experiência na libertação a e instrução de escravos e ex-escravos.
A questão da luta pela terra, além dos trabalhos do NPGEO e dos livros de “feição sociológica”, tem sido tematizada por Antônio Fernando de Araújo Sá, no Departamento de História da UFS. Dos trabalhos publicados merece destaque o artigo “História oral da luta dos trabalhadores rurais sem-terra em Sergipe: 1985/1996” (cf. Sá, 1998). Diferentemente dos textos de Rosemiro Magno Eliano Lopes, Ariosvaldo Figueiredo e de muitos egressos do Mestrado em Geografia da UFS, os problemas de pesquisa de Fernando Sá não internalizam “o avanço das relações de produção capitalistas no campos” preocupando-se fundamentalmente com os processos de construção da memória dos movimentos que lutam pela posse da terra em Sergipe, sobretudo. O citado artigo é fruto dos trabalhos desenvolvidos pelo Projeto de Alfabetização e Educação para Jovens e Adultos nos Acampamentos de Reforma Agrária.
Os historiadores ainda trataram de problemas sanitários e do desenvolvimento das políticas públicas para o setor. As febres do Aracaju: dos miasmas aos micróbios, entre outras questões, relaciona as práticas sanitárias às transformações do mundo do trabalho. (cf. Santana, ?). Ainda no rol das políticas públicas, Antônio Lindvaldo Souza (1996)  apontou “a ineficiência da polícia e da justiça no controle da ordem pública em Sergipe, o que contribuiu para a exacerbação da violência” na região Agreste do Estado no período 1889/1930. Homens que têm parte com o Diabo é a seqüência de duas monografias que tratam também de violência, de processos disciplinadores no mundo do trabalho urbano em Aracaju entre 1910 e 1930. (cf. Souza, 1991, 1993).
Os trabalhos até aqui citados, em sua maioria frutos dos cursos de Pós-Graduação de docentes universitários, tiveram suas problemáticas ampliadas nos Departamentos da UFS a partir das monografias de graduação. São exemplo dessa derivação os vários estudos sobre escravos, questões agrárias e fundiárias e operariado. (cf. Santos, J., 1996; Santos, J, 1998; Lima, J., 1983; Cruz, 1996; Santos, J. A. ?; Santos, A., 1997; Guedes, 1997; Lima I. 2000). Outras pesquisas nasceram da própria demanda do alunado em torno de questões clássicas da experiência local como o cangaço e a organização de movimentos sociais. (Santos, A. 1999; Bernardino, 2000; Silva, P. 2001).
Para citar este texto

FREITAS, Itamar. Diálogos com Calazans: A historiografia sobre Sergipe nos últimos 30 anos (O Social). Gazeta de Sergipe, Aracaju, p. 6-6, 10 mar. 2002.


Notas
[1] Sobre a constituição do campo “História da Cultura” ver: Rodrigues (Teoria..., 1969, p. 145-221) e  Castro (1997, p. 45-59).
[2] Talvez o historiador já estivesse ensaiando um trabalho dessa natureza quando publicou artigo sobre as influências “de sangue” francês e holandês na constituição do sergipano. cf. Calasans, José. Aspectos da formação sergipana. (cf. Calazans, 1942, p. 7-13).
[3] Mais da metade dessa obra é dedicada especificamente à história do município de Capela, terra natal do autor.
[4] Figueiredo, Ariosvaldo. Enforcados: o índio em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
[5] Ver também, do mesmo autor: Tráfico inter e intra-provincial de escravos no Nordeste açucareiro: Sergipe (1850/1887), publicado em 1992, Revista do IHGS.
[6] Na esteira desse trabalho, alguns trabalhos de Iniciação Científica já começam a apresentar os primeiros resultados, por exemplo: José Mário Resende e o de Joceneide Santos, já referenciados neste texto.
[7] Ver também capítulo de Textos para a história de Sergipe referente à questão da terra. Diniz, (1991, p. 167-199).