domingo, 10 de junho de 2001

Indicadores da nova historiografia sergipana

A história da historiografia sergipana é uma área recente do saber acadêmico que trata, principalmente, das obras, autores, instituições e concepções teórico-metodológicas relativas à escrita da história local. Ela tem periodizado a trajetória do discurso histórico a partir de elementos indicadores de ruptura nas formas de escrita como o surgimento da primeira obra de um cronista sergipano sobre a província (Apontamentos históricos e Topográficos... de J. Travassos – 1860), a primeira História de Sergipe em bases científicas (F. Freire – 1891), a primeira instituição especificamente voltada para os estudos histórico-geográficos (o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, 1912) e, por fim, a metodologia histórica introduzida pelo Curso de História da UFS (início da década de 1970). Se for consenso entre os historiadores que a virada do milênio pode servir também como marco delimitador de uma nova etapa, por certo, a adoção da disciplina “Prática de Pesquisa” como requisito obrigatório para obtenção do grau de licenciado em História, deverá ser considerada um divisor de águas na história da historiografia local.
Os motivos não são poucos. Primeiro, o fato de que a obrigatoriedade de uma pesquisa orientada para todo graduando contribui para mudar o (não tão) antigo perfil do professor: um adestrado reprodutor da pesquisa de ponta junto aos ensinos fundamental e médio. Para romper essa dicotomia – teoria/conteúdo – o Colegiado do curso e o Conselho Departamental promoveram reformas curriculares com o intuito de formar o “professor-pesquisador”, sinônimo de profissional crítico. Depois, tem o duplo ganho historiográfico e social. Com os trabalhos de conclusão de curso a experiência sergipana está ficando menos desconhecida e a bibliografia pátria mais rica e plural. Já foi por demais constatado que os feitos da terra pouco aparecem nas sínteses sobre história do Brasil e no livro didático a situação é bem pior. Logo, se os próprios sergipanos não transformarem a sua experiência passada em objeto de investigação, certamente não serão os alagoanos ou mesmo os baianos ou japoneses que sobre ela se debruçarão. Mas os estudantes de história responderam bem à renovação curricular de 1993 e, juntamente com os professores, vêm refinando o processo ano a ano. O resultado desse empenho são as dezenas de trabalhos produzidos, tematizando, como afirmavam Ranke e os pais dos Annales, todo o tipo de experiência humana.
Para se ter uma idéia do impacto dos novos trabalhos, em termos quantitativos, basta informar que na década de 1980 até a metade dos anos noventa, excetuando-se os poucos trabalhos de pós-graduação dos professores do DHI e dos membros do IHGS, a pesquisa não chegou a interessar uma dezena de recém-formados em história. Com a introdução da “monografia”, esse número já se aproxima de uma centena e a média pode chegar à trinta por ano a partir de 2001. Além da quantidade expressiva de trabalhos há outro fato a destacar: hoje, o prazer de “ser historiador” começa a deixar de pertencer somente aos professores da Universidade. Estimulados pelas disciplinas teórico-metodológicas, pelos estágios e programas de iniciação científica, alguns alunos já se aventuram em publicar um artigo em jornal de circulação diária ou palestrar em determinados eventos sem temer o aval dos velhos mestres. Mas que tipo de escrita produzem esses novos historiadores?
A historiografia dos noviços é modesta quanto aos recortes temporais. Por serem produzidas entre 6 e 12 meses, circunscrevem espaços cronológicos relativos a uma ou duas décadas apenas. Extrapolam esses limites alguns poucos trabalhos que, devido às peculiaridades do objeto (um inventário de jornais, a vida de uma instituição como a Santa Casa de Misericórdia de São Cristóvão, a busca de relatos de viajantes sobre Sergipe), abrangem um ou mais séculos. Dos períodos enfocados (segundo a segmentação varnhagenena) há expressiva escassez de estudos sobre a colônia (3%),  campo do qual não havia especialista nos anos 1990 no DHI. O período imperial chegou a interessar a treze alunos enquanto que a contemporaneidade republicana atraíu setenta e sete por cento do total. Metade desses últimos explorou temas situados entre as décadas de 1960 e 2000.
Quanto ao recorte espacial, apenas vinte por cento assumiram todo o estado de Sergipe e em termos de município, Aracaju é a grande estrela com quarenta por cento dos trabalhos. Não obstante, outros municípios terem sido enfocados – São Cristóvão (5 monografias), Estância (3), Laranjeiras (2), Lagarto, Campo do Brito, Divina Pastora, Indiaroba, Itabaiana, Itaporanga, Siriri, Malhador, Porto da Folha, Propriá e Santa Luzia (um trabalho cada) – os alunos de história continuam a dever maior atenção às localidades situadas nas regiões Agreste e Sertão.
Em relação ao objeto enfocado, os “eventos” perdem de longe para o trabalho sobre instituições artístico-culturais e os movimentos organizados (políticos e sociais em luta pela terra e contra o autoritarismo). Em quantidade intermediária ficam os trabalhos que tematizam grupos (estudantes e religiosos, por exemplo). O caráter de “história problema”, sugerido pelos recortes dos objetos, fica muito mais nítido quando as monografias são examinadas sob o ângulo das esferas do conhecimento. A economia (2%), com a experiência cooperativista da Colônia Treze e a crise econômica sobre o município de Santa Luzia no século XIX, perde fôlego em relação à política (15%)  – questões partidárias e organização do movimento estudantil. Os trabalhos sobre o social (26%) tem tratado da experiência dos trabalhadores (organização, exploração), de alguns aspectos do escravismo (imagens, delitos, destino pós-abolição), do problema da terra (conflitos, assentamentos) e do cangaço. São questões pouco recorrentes dessa esfera, mas não menos relevantes, os indígenas, políticas públicas de saúde, preocupações higiênicas e prostituição feminina.
Apesar do grande número de estudos sobre o social, o predomínio da pesquisa recai mesmo sobre a cultura e/ou cultural. Desse segmento mereceram atenção as instituições e equipamentos intelectuais (Universidade Federal de Sergipe, Arquivo Público Estadual, Museus do Homem Sergipano e Afro, bibliotecas Clodomir Silva e Pública Epifânio Dória, centros culturais como o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e a Casa de Cultura Afro-Sergipana); a produção historiográfica dos historiadores Sebrão Sobrinho, Maria Thetis Nunes, José Silvério Leite Fontes e José Calazans; a historiografia dos viajantes sobre Sergipe; festas populares dedicadas ao Divino Espírito Santo, São José, São João, Santos Reis, Carnaval e comemorativas ao centenário de Aracaju; produção artística e consumo relativos ao teatro, cinema, pintura e arquitetura. A religiosidade dos católicos, protestantes e umbandistas; políticas públicas voltadas para a educação e, até mesmo, o simbolismo dos registros gráficos nos sítios pré-históricos da região de Xingó são também alvo do interesse dos novos historiadores na esfera da cultura.
Tal variedade (sem falar na pluralidade teórico-metodológica) vem demonstrar o empenho dos docentes da UFS no desvelamento da vivência local. As monografias não representam somente um avanço quantitativo. Não são simples trabalhos acadêmicos condenados às estantes. Tratam-se, em muitos casos, de embriões de teses de pós-graduação ou mesmo da abertura de novas linhas de pesquisa sobre história de Sergipe.
Os próximos meses podem revelar algumas mudanças nas monografias tanto em termos de temática quanto de metodologia. A chegada dos professores doutores Jorge Carvalho e Fábio Maza e o redirecionamento dos professores Francisco José Alves para o período colonial e Terezinha Oliva para a seara das políticas públicas no período republicano (cultura e educação), além da saída de mestres para o doutorado em 2001, apontam para a consolidação do “terceiro nível” em Sergipe. A produção simultânea das monografias de alunos do Projeto de Qualificação Docente é também outro fator, a curto prazo, com possibilidades de modificar esse perfil. Dentro de pouco mais de um ano teremos aproximadamente cento e cinqüenta trabalhos sobre a experiência de boa parte dos municípios sergipanos que, além de contarem sobre o passado dessas comunidades (algumas delas completamente virgens para os historiadores), poderão trazer novos problemas e hipóteses estimulando a escrita de uma nova síntese sobre Sergipe. Sendo assim, temos mais é que desejar vida longa tanto para os novos historiadores, como para a “monografia” final do curso de história.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Indicadores da nova historiografia. Jornal da Cidade, Aracaju, p. 6-6, 10 jun. 2001.


Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.