quarta-feira, 4 de julho de 2001

Verdades sobre jornais

Certa vez, numa daquelas discussões pueris no Restaurante da UFS, sobre as competências e os limites entre as disciplinas, um estudante de jornalismo estufou o peito e interpelou-me: “E vocês historiadores, que sobrevivem à custa dos nossos escritos, ainda não se convenceram de que sem jornal não há conhecimento histórico?” Naquele momento, entusiasmado com a ampliada noção de fonte histórica, introduzida pelos Annales, procurei responder à altura. E com as mesmas amabilidades. Hoje, depois de cinco anos de “formado”, não posso deixar de admitir que aquele arroubo do colega tinha lá as suas verdades. O jornal é mesmo fonte primordial para a escrita da história do Brasil dos séculos XIX e XX. Ele fornece ao leitor um coquetel de informações que abrange as esferas do público (oficial) e do privado; anuncia simultaneamente (e esse é um grande trunfo) como querem ser representados os poetas, governantes, religiosos, cientistas e madames e como devem ser apresentados as pervertidas, os tarados, migrantes, escravos e outros elementos da escória social. O jornal, tanto pode descrever a situação econômico-financeira do Estado de Sergipe durante uma década, como trazer, em quadro próximo a esse, a lista diária dos policiais de serviço em um quarteirão da periferia de Aracaju. Entretanto, apesar da riqueza de dados e diferentemente de como pensava o aprendiz de jornalista – alguns veteranos ainda pensam dessa forma (cf. Carlos Chagas, 2001, p. 10) –, a informação veiculada por esse meio de comunicação não é “o que realmente aconteceu”, não é a “realidade”. Em outras palavras, jornal não é história.
De onde vem, afinal, a força dessa afirmação? Ela tem origem na tradição cartesiana da “crítica de fontes” que vai de Mabillon a Ranke, de Bernheim a José Honório Rodrigues. Logo, nos domínios de Clio, lê-se jornal conservando o imperativo da “dúvida metódica” (Saliba, 1988, p. 1082). Talvez, por isso, os manuais de introdução à história tenham omitido o exame dos jornais dos passos da crítica documental (Langlois & Seignobos, 1946; Commager, 1967; Glénisson, 1991). Quando o fizeram, como José Honório Rodrigues, foram enfáticos: “Pondo de lado o editorial, que é a parte menos digna de fé, a própria notícia e o anúncio devem ser usados com cautela, [pois] o problema crucial não é mais saber quem escreveu, ou o que escreveu [como procede-se em relação aos demais documentos] mas a quem pertence o jornal.” (Rodrigues, 1969, p. 417). E não se trata apenas de pronunciar o velho chavão “nenhum discurso é inocente”. Mestres da historiografia contemporânea não modificam uma letra da afirmação rodrigueana. O “annalista” francês Daniel Roche, por exemplo, confessa que é “muito complicado compreender o contínuo ajustamento [existente] entre as autoridades, os redatores e o público”, sem falar nos períodos onde a censura impera na imprensa (Pallares-Burke, 2000, p. 171). Robert Darnton, jornalista e historiador norte-americano, é taxativo: os jornais não são “janelas transparentes para um mundo que perdemos (...). Eles são coleções de histórias escritas por profissionais dentro das convenções de seu ofício” (Darnton, 2001, p. 7). 
Mas, não se pretende aqui instituir uma cruzada contra os jornais. Muito pelo contrário, o que se deseja é exatamente apontar os benefícios do trabalho com esse tipo de documento. O próprio Robert Darnton vê nas “histórias-notícias” um tipo de narrativa que transmite “o modo como os contemporâneos explicaram os fatos e encontraram algum significado na confusão fervilhante do mundo a seu redor”. (2001, p. 7). Para Asa Briggs, prestigiado historiador britânico, a leitura de jornais é um obrigatório exercício de imersão na época sobre a qual se deseja estudar. Isso “nos possibilita criar um léxico, ao recuperar a linguagem técnica da época, ao perceber quais são os seus conceitos-chave.” (Pallares-Burke, 2000, p. 73). Outros historiadores aconselham aos alunos folhearem os jornais por puro prazer. Sem fazer fichas. Apenas lendo anúncios e saboreando ilustrações. Assim, pode-se aprender muito mais do que examinando um fundo de correspondências, livros de autores clássicos ou teses universitárias. (Thuillier & Tulard, 1989, p. 66). Seja por prazer ou por obrigação, o que importa ao historiador, enfim, é retirar o máximo de informações possíveis sobre os acontecimentos, sobre a formação e a reflexão da opinião pública, sobre os grupos de pressão social e sobre a própria imprensa (Salvador, 1976, p. 90-91), tendo o cuidado, todavia, de contrastá-las com outros tipos de fontes à disposição. Agindo dessa maneira, alargaremos progressivamente a trilha aberta por Gilberto Freyre que, através de recorrências dos anúncios de escravos à venda e fugidos, tentou caracterizar as relações sociais entre segmentos escravos, operários e patriarcais no Brasil (Freyre, 1963). O mesmo pode-se dizer em relação à esfera política. Em nível, local basta citar o exemplo seminal de Ibarê Dantas em O Tenentismo em Sergipe (1974). A identificação de proprietários e redatores, o mapeamento de opiniões e posições político-partidárias cruzadas com as informações colhidas através das mensagens, crônicas e entrevistas foram fundamentais para o desvelamento de uma temática quase virgem, à época, em termos de Brasil.
Mas o que fazer para usufruir dos benefícios do jornal como fonte histórica? Certamente, para pôr em prática alguns dos exemplos indicados nesse artigo, o historiador tem que enfrentar as deficiências dos instrumentos de consulta e os problemas de conservação dos periódicos (Rodrigues, 1982, p. 170). No caso sergipano, a elaboração de inventários, catálogos e listagens dos jornais encontra adeptos antigos e modernos entre os historiadores. Tanto Armindo Guaraná (1908), Clodomir Silva (1920) quanto os trabalhadores do Arquivo Público e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe deram mostras de como facilitar o acesso dos pesquisadores às publicações. O mais recente trabalho do gênero saiu do Curso de Licenciatura em História da UFS. A aluna Márcia Regina de Andrade, orientada pelo professor Francisco José Alves, lançou em maio último, o Catálogo dos jornais estancianos: 1932/2000. Como se vê, não é bem nos instrumentos de busca que reside o nosso grande entrave, e sim, nas formas de acondicionamento e conservação dos jornais.
Vejamos apenas um caso ilustrativo em Sergipe, o da Biblioteca Pública Epiphanio Dória. A instituição tem tradição centenária na guarda e preservação de periódicos. Conserva a principal coleção conhecida sobre jornais sergipanos dos séculos XIX e XX. Como em outros lugares do Brasil, os jornais da BPED também enfrentam os problemas causados pela oxidação e ressecamento do papel, as agressões de alguns consulentes durante o manuseio das “folhas” e, ainda, o preço de tentativas de acondicionamento que se revelaram nocivas à conservação dos jornais. Para os últimos problemas, trabalho educativo, mas, para as questões técnicas, os profissionais do ofício não vêem outra saída senão a microfilmagem do material através de trabalho conjunto do Governo do Estado e da Universidade Federal de Sergipe. Enquanto as políticas públicas para o setor da cultura engatinham, mais de cento e quinze títulos de jornal continuam interditados à consulta pública e muitos outros, em breve, terão o mesmo destino. Para se ter uma idéia do volume desse acervo, basta imaginar uma sala de 20m2 ocupada por dez estantes que armazenam cadernos e pacotilhas de periódicos. A última iniciativa de salvar esse tipo de documento, data de 1997 quando foram disponibilizados trinta e oito títulos em CDs Room (SIMH/SEC). Essa já foi uma excepcional contribuição. O problema é que não são encontrados os CDs no mercado, e os pesquisadores não dispõem de alguns títulos em suporte papel.
Além dessas questões, as deficiências na conservação dos periódicos locais têm gerado um fato bastante curioso. Algumas monografias e dissertações produzidas sobre os séculos XIX e XX (primeira metade) têm se transformado, automaticamente, em fontes históricas únicas e primordiais tão logo são defendidas. Nada contra a “imortalização” precoce desses trabalhos. O problema é que a interdição dos acervos, em muitos casos, acaba inibindo o imperativo da “dúvida metódica” e abortando o surgimento de novos “objetos, problemas e abordagens.” Situações como essa, exigem  que a comunidade (científica e artística, inicialmente) tome posições firmes e mobilize-se em torno da preservação do patrimônio cultural sergipano (incluindo-se aí os acervos de periódicos). Certamente projetos de  microfilmagem ou digitalização de jornais não têm a mesma relevância social do problema da seca ou da falta de pagamento dos pensionistas do IPES. Mas, sem conservar esses mesmos jornais, o cidadão ver-se-á desprovido de argumentos para criticar e recusar os paliativos encontrados por sucessivos governos no combate à seca desde o século XIX e, provavelmente, daqui a alguns anos, nem mesmo relembrará os verdadeiros responsáveis pelos desmandos que levaram à falência o Instituto de Previdência do Estado. Até lá, parte da memória social deverá ter sido rasgada, fragmentada, e apagada juntamente com os acervos de periódicos por falta de espaço, dinheiro, funcionários e de alguma vontade política.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Verdades sobre jornais. Jornal da Cidade, Aracaju, p. 4-4, 04 jul. 2001.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

domingo, 10 de junho de 2001

Indicadores da nova historiografia sergipana

A história da historiografia sergipana é uma área recente do saber acadêmico que trata, principalmente, das obras, autores, instituições e concepções teórico-metodológicas relativas à escrita da história local. Ela tem periodizado a trajetória do discurso histórico a partir de elementos indicadores de ruptura nas formas de escrita como o surgimento da primeira obra de um cronista sergipano sobre a província (Apontamentos históricos e Topográficos... de J. Travassos – 1860), a primeira História de Sergipe em bases científicas (F. Freire – 1891), a primeira instituição especificamente voltada para os estudos histórico-geográficos (o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, 1912) e, por fim, a metodologia histórica introduzida pelo Curso de História da UFS (início da década de 1970). Se for consenso entre os historiadores que a virada do milênio pode servir também como marco delimitador de uma nova etapa, por certo, a adoção da disciplina “Prática de Pesquisa” como requisito obrigatório para obtenção do grau de licenciado em História, deverá ser considerada um divisor de águas na história da historiografia local.
Os motivos não são poucos. Primeiro, o fato de que a obrigatoriedade de uma pesquisa orientada para todo graduando contribui para mudar o (não tão) antigo perfil do professor: um adestrado reprodutor da pesquisa de ponta junto aos ensinos fundamental e médio. Para romper essa dicotomia – teoria/conteúdo – o Colegiado do curso e o Conselho Departamental promoveram reformas curriculares com o intuito de formar o “professor-pesquisador”, sinônimo de profissional crítico. Depois, tem o duplo ganho historiográfico e social. Com os trabalhos de conclusão de curso a experiência sergipana está ficando menos desconhecida e a bibliografia pátria mais rica e plural. Já foi por demais constatado que os feitos da terra pouco aparecem nas sínteses sobre história do Brasil e no livro didático a situação é bem pior. Logo, se os próprios sergipanos não transformarem a sua experiência passada em objeto de investigação, certamente não serão os alagoanos ou mesmo os baianos ou japoneses que sobre ela se debruçarão. Mas os estudantes de história responderam bem à renovação curricular de 1993 e, juntamente com os professores, vêm refinando o processo ano a ano. O resultado desse empenho são as dezenas de trabalhos produzidos, tematizando, como afirmavam Ranke e os pais dos Annales, todo o tipo de experiência humana.
Para se ter uma idéia do impacto dos novos trabalhos, em termos quantitativos, basta informar que na década de 1980 até a metade dos anos noventa, excetuando-se os poucos trabalhos de pós-graduação dos professores do DHI e dos membros do IHGS, a pesquisa não chegou a interessar uma dezena de recém-formados em história. Com a introdução da “monografia”, esse número já se aproxima de uma centena e a média pode chegar à trinta por ano a partir de 2001. Além da quantidade expressiva de trabalhos há outro fato a destacar: hoje, o prazer de “ser historiador” começa a deixar de pertencer somente aos professores da Universidade. Estimulados pelas disciplinas teórico-metodológicas, pelos estágios e programas de iniciação científica, alguns alunos já se aventuram em publicar um artigo em jornal de circulação diária ou palestrar em determinados eventos sem temer o aval dos velhos mestres. Mas que tipo de escrita produzem esses novos historiadores?
A historiografia dos noviços é modesta quanto aos recortes temporais. Por serem produzidas entre 6 e 12 meses, circunscrevem espaços cronológicos relativos a uma ou duas décadas apenas. Extrapolam esses limites alguns poucos trabalhos que, devido às peculiaridades do objeto (um inventário de jornais, a vida de uma instituição como a Santa Casa de Misericórdia de São Cristóvão, a busca de relatos de viajantes sobre Sergipe), abrangem um ou mais séculos. Dos períodos enfocados (segundo a segmentação varnhagenena) há expressiva escassez de estudos sobre a colônia (3%),  campo do qual não havia especialista nos anos 1990 no DHI. O período imperial chegou a interessar a treze alunos enquanto que a contemporaneidade republicana atraíu setenta e sete por cento do total. Metade desses últimos explorou temas situados entre as décadas de 1960 e 2000.
Quanto ao recorte espacial, apenas vinte por cento assumiram todo o estado de Sergipe e em termos de município, Aracaju é a grande estrela com quarenta por cento dos trabalhos. Não obstante, outros municípios terem sido enfocados – São Cristóvão (5 monografias), Estância (3), Laranjeiras (2), Lagarto, Campo do Brito, Divina Pastora, Indiaroba, Itabaiana, Itaporanga, Siriri, Malhador, Porto da Folha, Propriá e Santa Luzia (um trabalho cada) – os alunos de história continuam a dever maior atenção às localidades situadas nas regiões Agreste e Sertão.
Em relação ao objeto enfocado, os “eventos” perdem de longe para o trabalho sobre instituições artístico-culturais e os movimentos organizados (políticos e sociais em luta pela terra e contra o autoritarismo). Em quantidade intermediária ficam os trabalhos que tematizam grupos (estudantes e religiosos, por exemplo). O caráter de “história problema”, sugerido pelos recortes dos objetos, fica muito mais nítido quando as monografias são examinadas sob o ângulo das esferas do conhecimento. A economia (2%), com a experiência cooperativista da Colônia Treze e a crise econômica sobre o município de Santa Luzia no século XIX, perde fôlego em relação à política (15%)  – questões partidárias e organização do movimento estudantil. Os trabalhos sobre o social (26%) tem tratado da experiência dos trabalhadores (organização, exploração), de alguns aspectos do escravismo (imagens, delitos, destino pós-abolição), do problema da terra (conflitos, assentamentos) e do cangaço. São questões pouco recorrentes dessa esfera, mas não menos relevantes, os indígenas, políticas públicas de saúde, preocupações higiênicas e prostituição feminina.
Apesar do grande número de estudos sobre o social, o predomínio da pesquisa recai mesmo sobre a cultura e/ou cultural. Desse segmento mereceram atenção as instituições e equipamentos intelectuais (Universidade Federal de Sergipe, Arquivo Público Estadual, Museus do Homem Sergipano e Afro, bibliotecas Clodomir Silva e Pública Epifânio Dória, centros culturais como o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e a Casa de Cultura Afro-Sergipana); a produção historiográfica dos historiadores Sebrão Sobrinho, Maria Thetis Nunes, José Silvério Leite Fontes e José Calazans; a historiografia dos viajantes sobre Sergipe; festas populares dedicadas ao Divino Espírito Santo, São José, São João, Santos Reis, Carnaval e comemorativas ao centenário de Aracaju; produção artística e consumo relativos ao teatro, cinema, pintura e arquitetura. A religiosidade dos católicos, protestantes e umbandistas; políticas públicas voltadas para a educação e, até mesmo, o simbolismo dos registros gráficos nos sítios pré-históricos da região de Xingó são também alvo do interesse dos novos historiadores na esfera da cultura.
Tal variedade (sem falar na pluralidade teórico-metodológica) vem demonstrar o empenho dos docentes da UFS no desvelamento da vivência local. As monografias não representam somente um avanço quantitativo. Não são simples trabalhos acadêmicos condenados às estantes. Tratam-se, em muitos casos, de embriões de teses de pós-graduação ou mesmo da abertura de novas linhas de pesquisa sobre história de Sergipe.
Os próximos meses podem revelar algumas mudanças nas monografias tanto em termos de temática quanto de metodologia. A chegada dos professores doutores Jorge Carvalho e Fábio Maza e o redirecionamento dos professores Francisco José Alves para o período colonial e Terezinha Oliva para a seara das políticas públicas no período republicano (cultura e educação), além da saída de mestres para o doutorado em 2001, apontam para a consolidação do “terceiro nível” em Sergipe. A produção simultânea das monografias de alunos do Projeto de Qualificação Docente é também outro fator, a curto prazo, com possibilidades de modificar esse perfil. Dentro de pouco mais de um ano teremos aproximadamente cento e cinqüenta trabalhos sobre a experiência de boa parte dos municípios sergipanos que, além de contarem sobre o passado dessas comunidades (algumas delas completamente virgens para os historiadores), poderão trazer novos problemas e hipóteses estimulando a escrita de uma nova síntese sobre Sergipe. Sendo assim, temos mais é que desejar vida longa tanto para os novos historiadores, como para a “monografia” final do curso de história.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Indicadores da nova historiografia. Jornal da Cidade, Aracaju, p. 6-6, 10 jun. 2001.


Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2001

Por uma História da Universidade Federal de Sergipe

Entrada frontal da Reitoria da UFS.
Fonte: www.ufs.br
A experiência da Universidade Federal de Sergipe, como instituição, ainda não foi historiada. Essa é a constatação rotineira de todos os que se debruçam sobre um determinado aspecto das suas atividades de forma um pouco mais sistemática. A inexistência de um trabalho de síntese tem sido reclamação de pesquisadores em geral, de alguns cidadãos usuários dos seus serviços, mas também da maioria dos administradores da própria UFS. Justificativas sobre essa lacuna historiográfica não faltam, e os mesmos "reclamantes" acabam concordando entre si que a elaboração de uma obra dessa natureza enfrentaria problemas de ordem metodológica, financeira, ideológica etc. Fala-se em dispersão de fontes, nas dificuldades em estudar uma empresa com atores e interesses tão diferenciados, com ações incrustadas em vários setores da sociedade. Estabelecendo também a minha hipótese, eu diria que a produção de uma narrativa sintética sobre a UFS, além das motivações expostas, esbarra, sim, na permanente discussão de questões sobre as quais não há consenso sequer estratégico/temporário, tais como: o que é uma Universidade? Para que serve uma Universidade? Qual a Universidade que queremos? Que tipo de Universidade tem sido construída ao longo desses trinta e dois anos? Sendo assim, vamos fazendo muita história no dia-a-dia (protestando com greve, subindo no ranking do "provão", dizendo impropérios na formatura, inaugurando laboratórios, invadindo o prédio da Reitoria, descobrindo o valor terapêutico de ervas vulgares, ganhando prêmios internacionais etc.) e relegando, quase sempre, a historiografia sobre a instituição a um plano inferior (quando muito, a alguns folhetos produzidos de cinco em cinco anos).
Certamente, alguns "reclamantes" administradores têm dado a sua contribuição. Os Relatórios de Gestão e os textos sobre Planejamento Institucional não chegam a se constituírem documentos historiográficos, mas registram (ou reconstituem) os "feitos" oficiais de até uma década. Grupos de pesquisadores têm inventariado narrativas (Núcleo de Pesquisa Sociedade e Educação), professores aposentados têm produzido artigos (Beatriz Góis Dantas, Maria Thetis Nunes) e algumas monografias abordam as escolas fundadoras da Universidade como as de Serviço Social e Filosofia. Mas o trabalho sintético sobre a instituição ainda é um desafio para todos.
Um raro exemplo daquilo a que me refiro está na dissertação de Luiz Eduardo Oliva O processo de gestação de uma universidade do Nordeste: o caso Sergipe (UFSC, 1990). Esse trabalho procura, entre outros fins, "apontar as razões do surgimento tardio do ensino superior em Sergipe" e, para tanto, analisa os condicionantes econômicos, sociais e políticos que permitiram a concretização da empreitada, desde meados da década de 1920. Sob as lentes de Gramsci e Althusser, Oliva chegaria, certamente, a resultados metodologicamente previsíveis: a introdução do ensino superior em Sergipe dependeu do quadro econômico da época, e, portanto, está ligado aos interesses da classe dominante (reprodução das relações sociais de produção). Por essa visão, o autor tanto explica a fundação dos cursos superiores nas décadas de 1940 e 1950 (recuperação da indústria açucareira - Química; planificação do desenvolvimento - Economia; modernização do Estado - Direito; educação do operariado - Faculdade de Filosofia; "apaziguamento dos desafortunados" - Medicina e Serviço Social) quanto a instalação da Universidade Federal de Sergipe, motivada, principalmente pela política desenvolvimentista em nível local (exploração do petróleo e outros recursos naturais). Uma das contribuições desse trabalho está justamente na interpretação empreendida sobre a fundação da UFS e na tentativa de esboçar uma síntese sobre a experiência universitária sergipana.
Recentemente, durante a comemoração dos trinta anos da UFS, a comissão responsável pelo evento achou por bem historiar a experiência da instituição, senão em todos os ramos da sua atividade, pelo menos em relação ao ensino de graduação. O resultado do trabalho, organizado pelas professoras Maria Stella Tavares Rollemberg e Lenalda Andrade Santos (sob o apoio institucional da COAVI/COGEPLAN) foi lançado em 30/08/2000 no auditório da Reitoria, com a ausência, infelizmente, de oitenta por cento dos quarenta e três professores e mais de vinte estagiários que escreveram a obra UFS: História dos cursos de graduação. Ao todo, vinte e seis artigos constituem o trabalho que enfoca a trajetória dos cursos existentes até 1998 com suas respectivas modalidades e habilitações. Uma produção simples do CEAV/CIMPE, porém, muito bem cuidada. O texto inclui fotografias em p&b que retratam as faculdades fundadoras, os Centros acadêmicos e oferecem vista aérea da Cidade Universitária.
É uma iniciativa que nasce vitoriosa, pois, além de reunir pesquisadores que já se debruçavam sobre a história dos cursos (como Serviço Social e Enfermagem), cobrou dos mais antigos (Letras, Direito) o registro de suas trajetórias e estimulou os mais recentes (Engenharia Agronômica) a preservarem os eventos significativos de suas experiências. O livro traça o perfil de como está a UFS em termos de ensino de Graduação na entrada do novo milênio e, "de quebra", aponta e recolhe depoimentos importantes, já que alguns elementos da geração fundadora estão presentes, felizmente, para nos contar a história.
Mas, não esperem do livro um "maná" para todas as lacunas da história dos cursos na UFS. Deve-se ler o trabalho de forma compreensiva em relação às suas características, e a principal delas é a descompensação decorrente, é óbvio, da própria natureza coletiva e interdisciplinar da obra. A pluralidade a que me refiro está presente numa série de componentes, como: na formação acadêmica da autoria, constituída por físicos, cientistas sociais, biólogos etc.; na definição do objeto de trabalho, o curso, muitas vezes confundido com o departamento que lhe dá suporte; e nas formas de composição e estilo, variantes entre o sintético, o digressivo, o analítico, entre o matemático, o comedido e o “literário”. A diversidade também é expressa nos elementos selecionados como substanciais para cada texto. Nesse ponto as escolhas privilegiaram tanto o esforço dos professores pioneiros quanto a evolução da grade curricular, a formação do quadro docente, a inserção do curso na sociedade, os quadros e gráficos relativos a vagas, matrículas, diplomação, evasão, concorrência no vestibular etc.
Como não poderia deixar de ser, a idéia de produção historiográfica também mostra-se plural. As diferenças de concepção podem ser notadas na escolha dos atores da história; quem mais teria influenciado na trajetória de cada curso: professores, técnicos administrativos ou alunos? Os marcos temporais também flutuam. São elásticos o bastante para incluírem a década de 1920 ou o século XIX. Em outros casos, restringem-se à década de 1970 saltando, imediatamente, para o ano 1998. As fontes variam com o grau de acessibilidade e organização e até mesmo com a competência de cada autor em “dissecá-las”. Nos textos, predomina o depoimento oral em detrimento da documentação arquivística e bibliográfica. Em relação aos “motores da história”, a maioria é indiferente. Mas, há casos em que essa questão ganha um certo relevo, levando o leitor a se perguntar: o que determina a criação de um curso superior: a política do regime militar, a ideologia da igreja católica ou o voluntarismo de alguns professores ilustrados?
Talvez essa pluralidade responda também pela ausência da marca das organizadoras em alguns capítulos (questões como criação de curso, proposta original, evolução, corpos docente e discente, avaliação e inserção do curso na sociedade através do ensino, pesquisa e extensão). Mas essa diversidade é a mesma que já começa a sugerir um tipo ideal para uma próxima história de curso. É também através dela que se pode chegar a conhecer outros aspectos da UFS não estabelecidos no projeto original da obra, como a origem dos cursos de pós-graduação, a criação de alguns órgãos - o Hospital Universitário, o Biotério, o Museu de Antropologia - e o conhecimento de projetos vencidos, como a idéia de instalar o curso de Odontologia na cidade de Estância, a idéia de construir o HU na Cidade Universitária etc. Por esses tantos motivos, a História dos cursos de Graduação já é obra de referência sobre a história da UFS.
Os textos citados até aqui representam a tentativa de tornar inteligível a experiência de um verdadeiro "polvo" que não parou de crescer (felizmente) e mudar de cor nos últimos trinta e dois anos. Os problemas e métodos inerentes ao "como fazer" essa historiografia não foram e não serão resolvidos com a publicação de mais uma obra. Cada iniciativa desse tipo é bem vinda e só contribui para o refinamento dessa empresa que seria a síntese sobre a história da UFS. Para os "práticos" e céticos é importante a ressalva de que esse projeto não é irrelevante, já que a história vem sendo evocada na maioria dos discursos, em cada momento de decisão, ruptura ou aceleração dos destinos da instituição. A história da UFS vem sendo deglutida por força da autoridade ou da eloqüência dos evocadores, embora a sua narrativa nem sempre obedeça um certo tratamento científico.
Para contribuir com o debate, tendo por base os recentes acontecimentos -conflitos de identidade entre os professores e alunos do Campus, o Programa de Qualificação Docente, a defesa do processo democrático durante as eleições para Reitor, por exemplo -, sou levado a melhor compreender o processo histórico e, em seguida, reordenar posições teóricas em relação à questão. Para além das determinações de ordem estrutural (explicitadas por Luiz Eduardo Oliva) e dos condicionantes impostos pela conjuntura (presentes em alguns capítulos da obra coletiva), uma possível narrativa sobre a história da UFS deverá levar em conta o caráter historicista que vigorou na França no último quartel do século XIX e considerar com atenção os pequenos fatos, as pequenas causas e as determinações de ordem micropolítica (política no sentido weberiano). Talvez a historiografia da UFS possa ser pensada (e aqui não vai nenhuma consideração de ordem moral) mais em termos de pequenos ciúmes, secretos desejos, conflitos conjugais, rusgas de corredor e pequenas vinganças pessoais que em nível de determinações emanadas dos gabinetes de FHC, do FMI e do Banco Mundial. Mas essa é apenas uma possibilidade entre tantas outras oferecidas pelo ofício do historiador e pelo interesse de mais um "reclamante". 

Para citar este texto

FREITAS, Itamar. Por uma história da UFS. Informe UFS, São Cristóvão, p. 4-5, 22 fev. 2001.

Por uma história da UFS

A experiência da Universidade Federal de Sergipe, como instituição, ainda não foi historiada. Essa é a constatação rotineira de todos os que se debruçam sobre um determinado aspecto das suas atividades de forma um pouco mais sistemática. A inexistência de um trabalho de síntese tem sido reclamação de pesquisadores em geral, de alguns cidadãos usuários dos seus serviços, mas também da maioria dos administradores da própria UFS. Justificativas sobre essa lacuna historiográfica não faltam e os mesmos "reclamantes" acabam concordando entre si que a elaboração de uma obra dessa natureza enfrentaria problemas de ordem metodológica, financeira, ideológica etc. Fala-se em dispersão de fontes, nas dificuldades em estudar uma empresa com atores e interesses tão diferenciados, com ações incrustadas em vários setores da sociedade. Estabelecendo também a minha hipótese, eu diria que a produção de uma narrativa sintética sobre a UFS, além das motivações expostas, esbarra, sim, na permanente discussão de questões sobre as quais não há consenso sequer estratégico/temporário tais como: o que é uma Universidade? Para que serve uma Universidade? Qual a Universidade que queremos? Que tipo de Universidade tem sido construída ao longo desses trinta e dois anos? Sendo assim, vamos fazendo muita história no dia a dia (protestando com greve, subindo no ranking do "provão", dizendo impropérios na formatura, inaugurando laboratórios, invadindo o prédio da Reitoria, descobrindo o valor terapêutico de ervas vulgares, ganhando prêmios internacionais etc.) e relegando, quase sempre, a historiografia sobre a instituição a um plano inferior (quando muito, a alguns folhetos produzidos de cinco em cinco anos).
Certamente, alguns "reclamantes" administradores têm dado a sua contribuição. Os Relatórios de Gestão e os textos sobre Planejamento Institucional não chegam a se constituírem documentos historiográficos mas registram (ou reconstituem) os "feitos" oficiais de até uma década. Grupos de pesquisadores têm inventariado narrativas (Núcleo de Pesquisa Sociedade e Educação), professores aposentados têm produzido artigos (Beatriz Góis Dantas, Maria Thetis Nunes) e algumas monografias têm abordado as escolas fundadoras da Universidade como as de Serviço Social e Filosofia. Mas o trabalho sintético sobre a instituição ainda é um desafio para todos.
Um raro exemplo daquilo a que me refiro está na dissertação de Luiz Eduardo Oliva O processo de gestação de uma universidade do Nordeste: o caso Sergipe (UFSC, 1990). Esse trabalho procura, entre outros fins, "apontar as razões do surgimento tardio do ensino superior em Sergipe" e, para tanto, analisa os condicionantes econômicos, sociais e políticos que permitiram a concretização da empreitada, desde meados da década de 1920. Sob as lentes de Gramsci e Althusser, Oliva chegaria, certamente, a resultados metodologicamente previsíveis: a introdução do ensino superior em Sergipe dependeu do quadro econômico da época, e, portanto, está ligado aos interesses da classe dominante (reprodução das relações sociais de produção). Por essa visão, o autor tanto explica a fundação dos cursos superiores nas décadas de 1940 e 1950 (recuperação da indústria açucareira - Química; planificação do desenvolvimento - Economia; modernização do Estado - Direito; educação do operariado - Faculdade de Filosofia; "apaziguamento dos desafortunados" - Medicina e Serviço Social) quanto a instalação da Universidade Federal de Sergipe, motivada, principalmente pela política desenvolvimentista em nível local (exploração do petróleo e outros recursos naturais). Uma das contribuições desse trabalho está justamente na interpretação empreendida sobre a fundação da UFS e na tentativa de esboçar uma síntese sobre a experiência universitária sergipana.
Recentemente, durante a comemoração dos trinta anos da UFS, a comissão responsável pelo evento achou por bem historiar a experiência da instituição, senão em todos os ramos da sua atividade, pelo menos em relação ao ensino de graduação. O resultado do trabalho, organizado pelas professoras Maria Stella Tavares Rollemberg e Lenalda Andrade Santos (sob o apoio institucional da COAVI/COGEPLAN) foi lançado em 30/08/2000 no auditório da Reitoria, com a ausência, infelizmente, de oitenta por cento dos quarenta e três professores e mais de vinte estagiários que escreveram a obra UFS: História dos cursos de graduação. Ao todo, vinte e seis artigos constituem o trabalho que enfoca a trajetória dos cursos existentes até 1998 com suas respectivas modalidades e habilitações. Uma produção simples do CEAV/CIMPE, porém, muito bem cuidada. O texto inclui fotografias em p&b que retratam as faculdades fundadoras, os Centros acadêmicos e oferecem vista aérea da Cidade Universitária.
É uma iniciativa que nasce vitoriosa pois, além de reunir pesquisadores que já se debruçavam sobre a história dos cursos (como Serviço Social e Enfermagem), cobrou dos mais antigos (Letras, Direito) o registro de suas trajetórias e estimulou os mais recentes (Engenharia Agronômica) a preservarem os eventos significativos de suas experiências. O livro traça o perfil de como está a UFS em termos de ensino de Graduação na entrada do novo milênio e, "de quebra", aponta e recolhe depoimentos importantes, já que alguns elementos da geração fundadora estão presentes, felizmente, para nos contar a história.
Mas não esperem do livro um "maná" para todas as lacunas da história dos cursos na UFS. Deve-se ler o trabalho de forma compreensiva em relação às suas características e a principal delas é a descompensação decorrente, é óbvio, da própria natureza coletiva e interdisciplinar da obra. A pluralidade a que me refiro está presente numa série de componentes como: na formação acadêmica da autoria, constituída por físicos, cientistas sociais, biólogos etc.; na definição do objeto de trabalho, o curso, muitas vezes confundido com o departamento que lhe dá suporte; e nas formas de composição e estilo, variantes entre o sintético, o digressivo, o analítico, entre o matemático, o comedido e o “literário”. A diversidade também é expressa nos elementos selecionados como substanciais para cada texto. Nesse ponto as escolhas privilegiaram tanto o esforço dos professores pioneiros quanto a evolução da grade curricular, a formação do quadro docente, a inserção do curso na sociedade, os quadros e gráficos relativos a vagas, matrículas, diplomação, evasão, concorrência no vestibular etc.
Como não poderia deixar de ser, a idéia de produção historiográfica também mostra-se plural. As diferenças de concepção podem ser notadas na escolha dos atores da história; quem mais teria influenciado na trajetória de cada curso: professores, técnicos administrativos ou alunos? Os marcos temporais também flutuam. São elásticos o bastante para incluírem a década de 1920 ou o século XIX. Em outros casos, restringem-se à década de 1970 saltando, imediatamente, para o ano 1998. As fontes variam com o grau de acessibilidade e organização e até mesmo com a competência de cada autor em “dissecá-las”. Nos textos, predomina o depoimento oral em detrimento da documentação arquivística e bibliográfica. Em relação aos “motores da história”, a maioria é indiferente. Mas há casos em que essa questão ganha um certo relevo, levando o leitor a se perguntar: o que determina a criação de um curso superior, a política do regime militar, a ideologia da igreja católica ou o voluntarismo de alguns professores ilustrados?
Talvez essa pluralidade responda também pela ausência da marca das organizadoras em alguns capítulos (questões como criação de curso, proposta original, evolução, corpos docente e discente,  avaliação e inserção do curso na sociedade através do ensino, pesquisa e extensão). Mas essa diversidade é a mesma que já começa a sugerir um tipo ideal para uma próxima história de curso. É também através dela que se pode chegar a conhecer outros aspectos da UFS não estabelecidos no projeto original da obra, como a origem dos cursos de pós-graduação, a criação de alguns órgãos como o Hospital Universitário, o Biotério, o Museu de Antropologia e o conhecimento de projetos vencidos como a idéia de instalar o curso de Odontologia na cidade de Estância, a idéia de construir o HU na Cidade Universitária etc. Por esses tantos motivos, a História dos cursos de Graduação já é obra de referência sobre a história da UFS.
Os textos citados até aqui representam a tentativa de tornar inteligível a experiência de um verdadeiro "polvo" que não parou de crescer (felizmente) e mudar de cor nos últimos trinta e dois anos. Os problemas e métodos inerentes ao "como fazer" essa historiografia não foram e não serão resolvidos com a publicação de mais uma obra. Cada iniciativa desse tipo é bem vinda e só contribui para o refinamento dessa empresa que seria a síntese sobre a história da UFS. Para os "práticos" e céticos é importante a ressalva de que esse projeto não é irrelevante, já que a história vem sendo evocada na maioria dos discursos, em cada momento de decisão, ruptura ou aceleração dos destinos da instituição. A história da UFS vem sendo deglutida por força da autoridade ou da eloqüência dos evocadores, embora a sua narrativa nem sempre obedeça um certo tratamento científico.
Para contribuir com o debate, tendo por base os recentes acontecimentos, como conflitos de identidade entre os professores e alunos do Campus, o Programa de Qualificação Docente, a defesa do processo democrático durante as eleições para Reitor, por exemplo, sou levado a melhor compreender o processo histórico e em seguida reordenar posições teóricas em relação à questão. Para além das determinações de ordem estrutural (explicitadas por Luiz Eduardo Oliva) e dos condicionantes impostos pela conjuntura (presentes em alguns capítulos da obra coletiva), uma possível narrativa sobre a história da UFS deverá levar em conta o caráter historicista que vigorou na França no último quartel do século XIX e considerar com atenção os pequenos fatos, as pequenas causas e as determinações de ordem micropolítica (política no sentido weberiano). Talvez a historiografia da UFS possa ser pensada (e aqui não vai nenhuma consideração de ordem moral) mais em termos de pequenos ciúmes, secretos desejos, conflitos conjugais, rusgas de corredor e pequenas vinganças pessoais que em nível de determinações emanadas dos gabinetes de FHC, do FMI e do Banco Mundial. Mas essa é apenas uma possibilidade entre tantas outras oferecidas pelo ofício do historiador e pelo interesse de mais um "reclamante".

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Por uma história da UFS. Informe UFS, São Cristóvão, p. 4-5, 22 fev. 2001.

terça-feira, 30 de janeiro de 2001

Um Modesto contador de escravos

O trabalho no canavial. Desenho de Ciborg, Aracaju, 2008.
Os estudos relativos à "produção, distribuição, acumulação e consumo de bens materiais" ainda são escassos em Sergipe. À grita de José Calazans (1973), sobre essa lacuna, responderam Diana M. F. Leal, Lenalda A. Santos, Milton de Araújo, Sônia S. Batista, Ibarê Dantas, Terezinha Oliva e Maria Thetis Nunes. De forma sistemática, e com maior esforço empírico, Maria da Glória Santana Almeida esboçou "uma visão de conjunto do evolver econômico do Estado" (Sergipe: Fundamentos de uma economia dependente - 1984) que foi aprofundada após uma década em Nordeste Açucareiro (Aracaju: UFS/Banese, 1993).
Desde então, a vida material tem sido descortinada através de um diálogo bastante fecundo entre historiadores e economistas locais, à luz de problemáticas clássicas da historiografia especializada. O livro Reordenamento do trabalho: trabalho escravo e trabalho livre no Nordeste açucareiro - Sergipe 1850/1930, editado pela Funcaju em dezembro passado, é também resultado desses contatos entre professores universitários sergipanos e o prestigiado Instituto de Economia da Unicamp.
A novidade de Reordenamento do trabalho pode aqui ser duplamente qualificada: primeiro, pelos novos elementos fornecidos à historiografia clássica sobre temas ligados à estrutura fundiária, agrária, mão-de-obra, e capitais nordestinos; e, depois, pelas luzes lançadas sobre a experiência de alguns segmentos sociais sergipanos no período 1850/1930 como os trabalhadores livres pobres, os escravos e os senhores de engenho.
A respeito do debate historiográfico em que se insere a tese, não é demais relembrar que o problema da transição trabalho escravo/trabalho livre vem sendo interpretado a luz de modelos generalizantes inaugurados por Celso Furtado no final dos anos 1950. Para esse autor, nos locais onde as terras agricultáveis estivessem sob o monopólio de latifundiários haveria, com o fim do escravismo, uma transformação automática dos antigos escravos em trabalhadores assalariados.
Apesar das diferenças internas (e em relação ao pensamento fundador de Furtado), a historiografia especializada chegaria a algumas conclusões auxiliares sobre a gênese das desigualdades econômicas entre o Nordeste e o Sudeste. Dentre as mais importantes estariam as seguintes: 1) houve participação efetiva dos proprietários nordestinos no tráfico interprovincial de escravos; 2) foi patente o descompromisso desses senhores com o sistema escravista - apoiando, inclusive, muitas medidas abolicionistas; 3) as taxas de emigração dos nordestinos para outras regiões do país, após 1888, foram muito baixas. Essas e outras conclusões parciais conduziram os historiadores da economia a sentenciar que o Nordeste não enfrentou o problema da mão-de-obra.
Munindo-se de censos, inventários, correspondências, anúncios de jornal etc. (um dos diferenciais dessa obra em relação à pesquisa especializada dos anos 1930/1960), o professor Josué chegou a conclusões diametralmente opostas constatando que, no caso sergipano, a "transição" esteve longe de ser tranqüila. Em primeiro lugar, as propriedades açucareiras não constituíam latifúndios e nem os senhores de engenhos monopolizavam a Zona da Mata (terras mais férteis). Em seguida, constata a importação de escravos de outras Províncias e outras regiões para a Zona da Mata sergipana. Por fim, comprova a crença dos proprietários locais na vitalidade do escravismo através da constatação das baixas taxas de alforria e da grande concentração de escravos nas áreas agrícolas.
Desmontando a última conclusão da historiografia especializada, o autor demonstra que no período de estagnação da economia açucareira - 1900/1920 - foi enorme o contingente de emigrados sergipanos, sobretudo, para regiões Norte e Sudeste. Tais contrapontos servem, portanto, para afirmar que a "transição" foi, sim, um problema enfrentado pelos proprietários locais. E estes, por sua vez, tentaram desvencilhar-se criando instrumentos coercitivos e persuasivos que obrigassem à população pobre e livre a disponibilizar a sua mão-de-obra.
Ao contrário do que possa imaginar o "não especialista", acerca de uma obra de história econômica, os números e tabelas não foram condição suficiente para refutar premissas hegemônicas da historiografia clássica. Os indícios "extra-econômicos" buscados na esfera das idéias, ganharam relevo para demonstrar as motivações e atitudes dos principais agentes acerca do ordenamento do trabalho: homens livres e pobres e grandes proprietários.
Em relação aos segmentos "dominantes" da sociedade, deve-se destacar que nem sempre senhores de engenho e plantadores de cana estiveram em sintonia com as autoridades do governo, apesar da forma oligárquica e predominantemente rural que imperou na política sergipana. Quando o Estado tentou implementar medidas razoáveis e progressistas em relação ao desenvolvimento de Sergipe, como o registro, delimitação das terras e cobranças de impostos com base no uso do solo, houve recusa dos proprietários.
Entre os intelectuais, as mesmas contradições, relativas à (trans)plantação tardia de alguns elementos do processo civilizador, também podem ser detectadas. Isso demonstra que as "plantas" do humanismo, da ilustração e do liberalismo sofreram um penoso estágio de aclimatação em terras de Serigi.
Sobre os ex-escravos, especificamente, o silêncio das fontes e historiadores ainda impera. Apenas há indícios de que teriam se transformado em trabalhadores livres ligados às culturas de subsistência. De forma genérica, o livro do professor Josué demonstra como esse segmento (além dos trabalhadores pobres do período escravista) apropriou-se das terras inservíveis para o cultivo da cana-de-açúcar e aí subsistiu relativamente independente do mercado.
Após a abolição, os grandes proprietários resolveram lançar mão desse "exército agrícola de reserva para a plantation" utilizando, entre outros mecanismos, a normatização (com proibição pura e simples em muitos casos) da caça, pesca, coleta, manutenção de pequenas roças, criações e de algumas formas de lazer. A repressão ao modo de vida de parte da população e os protestos desse "campesinato marginal" contra as medidas legislativas e coercitivas geraram farto discurso em relação ao que hoje poderíamos chamar de "direito à preguiça", como também às definições de "vadiagem" e "vagabundagem" (sentidos contemporaneamente impressos na exigência policial da carteira de trabalho do cidadão comum que circula em grandes centros urbanos após as 22 horas).
Com as crises da agroindústria açucareira, o processo de modernização dos engenhos e a expansão da pecuária, os homens pobres estariam, por fim, subordinados aos proprietários rurais. Todavia, surge a alternativa da emigração massiva em busca do eldorado na Amazônia, São Paulo e sul da Bahia, desencadeando mais contradições tanto no seio dos proprietários rurais quanto dos intelectuais. Com isso, nasceriam novas explicações acerca de um fenômeno quase transformado em estigma: o caráter essencialmente migrante, "aventureiro" e "desgarrado" do povo sergipano. Estas são, em síntese, as maiores contribuições da obra do professor Josué.
Como nada pode ser perfeito, o acesso do leitor a esse valioso repositório sobre a experiência sergipana é prejudicado pelas "desafinações" da indústria editorial. A exemplo do ocorrido em Para conhecer a história de Sergipe (T. A Oliva e L. A. Santos - 1998), a Gráfica Opção portou-se com total desrespeito à produção local e à sua própria clientela. Páginas do Reordenamento foram excluídas, a reprodução dos mapas é de má qualidade e, ainda, texto e folhas do livro variam de tonalidade. São notas dissonantes, com certeza. Vale apenas o protesto do leitor, mas vale também a compra do livro, antes que seja transformada em obra rara (como sói acontecer com alguns textos sobre a história local).
O trabalho do professor Josué, na palavra de um não especialista em economia, é isso que foi aqui apresentado e alguma coisa a mais. Deverá ser incorporado aos próximos livros didáticos locais e, "se descoberto em tempo" (pelos formadores de opinião da região Sudeste), poderá desencadear uma série de pesquisas sobre espaço mais amplo, o Nordeste, alterando, quem sabe, um parágrafo nos livros didáticos de história do Brasil. Enquanto isso, o autor, que destila no texto fina ironia em relação aos seus pares, prossegue, de palestra em palestra afirmando-se um modesto contador de escravos

Para citar este artigo:
FREITAS, Itamar. Um modesto contador de escravos. Jornal da Cidade, Aracaju, 30 abr. 2001


Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para conhecer o sumário desta obra, acesse: <http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html>.